Bem que a mãe dele avisou: _ Carlos, meu filho, não vá tomar banho no rio na praia da Base, não se esqueça da cobra grande que tem no poço da Gameleira. A loca dela fica debaixo da igreja Nossa Senhora da Conceição, ali na curva do rio. A comadre Alzira falou que até na hora da missa já ouviram os esturros dessa cobra. Chega tremeu o chão. Outro dia, o pessoal que fica tomando pinga ali no porto, viram o lombo dela quando emergiu…estou lhe avisando, não seja maluvido, escute a sua mãe, não vá.
A recomendação da mãe do Carlos entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Assim como ele, outros também entraram para a estatística dos que morreram afogados na Gameleira e o corpo nunca apareceu. Claro, todos foram comidos por ela, pela cobra grande da Gameleira. Ali ela iria digerir o alimento por meses até o rio dar o primeiro repiquete. Só saia da loca com água nova chegava das cabeceiras. Sucuri grande é assim. Todos que morreram afogados na Base e o corpo não apareceu foram comidos pela fera.
Na década de 70 a cobra da Gameleira não era nenhuma invenção do imaginário popular. Ela vivia ali e fazia parte do cotidiano da cidade. Quando chegava o verão, com os festivais de música, muitos iam apreciar e acabavam sumindo no poço. A praia se estendia até o meio do rio pelo lado da Base. Do outro lado a água descia pelo canal, mas acima tinha (e tem quando o rio enche) um remanso de botar medo em qualquer um, era o poço. Fica bem na frente da entrada da igreja Nossa Senhora da Conceição. Um lugar do barranco meio esquisito. Nunca mergulhei ali, sempre tive medo.
Certo domingo eu e alguns colegas fomos à matinê no cine Recreio, também conhecido como “Poeirinha”. Acho que o filme era Lampião o Rei do Cangaço, em preto e branco. Antes de começar havia aglomeração na frente do cinema quando alguém gritou: A cobra da Gameleira saiu do poço. Foi a conta! Era menino voando no rumo do porto. Havia bastante gente olhando para o rio tentando ver a cobra. O Acre estava num repiquete de meio barranco. Começo do inverno.
“Eu vi ela, é da grossura de um camburão de 200 litros, é toda rajada”, falou alto o primeiro que tinha alertado o povo. A multidão se espremia no barranco olhando para as águas que giravam e espumava arrastando balseiros. Nem sinal. Alguém chegou informando que ela tinha pegado uma criança distraída que pescava piranambu em um porto abaixo da Cidade Nova. Então era verdade. Ela saiu mesmo da loca para comer. “Foi a filha do compadre, Zé”, falou uma mulher. Os mais afoitos, encharcados de álcool, jogavam paus, pedras gritando e cutucando a bicha para ver se ela colocava a cabeça para o lado de fora da água.
O sol declinava e a multidão continuava no porto tentando ver a famigerada. As primeiras luzes da Base já iam se acendendo quando alguém deu outro grito: “Olha ela! Olha ela, ali na entrada do poço, onde a água tá rodando no remanso, a criança tá barriga, olha o volume, está se movendo”. Foi um alvoroço. Realmente tinha algo no meio do balseiro boiando. Era muito grande. Possuía uma saliência no meio como uma barriga com alguma coisa dentro como acontece com as sucuris quando comem qualquer bicho na natureza.
As luzes próximas já refletiam na água. Foi um aparecimento assustador. Algumas pessoas se afastaram do barranco para a parte de cima da calçada com receio da cobra subir. Todos muito apreensivos até que um senhor de cabelos grisalhos, terno de linho branco, chapéu panamá na cabeça (era muito comum na época), dono de uma lancha ancorada ali por perto falou: “Acho que não é cobra coisa nenhuma, tá mais para uma sumaúma velha que o repiquete derrubou da margem e o rio vai arrastando”.
Começaram os protestos mediante a dúvidas lançadas pelo cavalheiro. Burburinho geral. “É a cobra sim, eu conheço”, protestou outro senhor que morava ali por perto no bairro do Quinze. A multidão acompanhou em coro: “É sim, é sim, é sim, é ela mesma”. “Ela pegou agora a pouco uma criança”. Com a chegada da noite aos poucos a aglomeração na Gameleira foi se dissipando. Cada um tomando o rumo da sua casa.
Para quem não sabe a sumaúma é uma árvore frondosa, muito bonita, forma uma copa gigante se destacando na floresta. Em seu meio ela tem uma barriga como barriga de cobra quando come alguma coisa. Ouvi dos antigos seringueiros, na minha infância, que nenhuma pessoa pode passar por debaixo de uma sumaúma quando o relógio bater meia noite. Tem que dar a volta na árvore. Se insistir leva uma surra de cipó de fogo dos que habitam o invisível.
Para a maioria dos que estavam ali no Porto da Gameleira naquele domingo à tarde de um ano qualquer da década de 70 não era uma sumaúma. Era a cobra grande da Gameleira que deu o ar de sua graça para todos soubessem que era a dona do pedaço. Foi ela que deu fim aos muitos desavisados que desafiavam sua autoridade.
A cobra morou na Gameleira por quase 20 anos ou mais. Um dia foi embora. O rio encheu muito, foi levada serenamente pela água enquanto dormia digerindo mais uma vítima. Chegou a ser vista em Boca do Acre, depois em Lábrea, no Amazonas, para nunca mais…a única homenagem que lhe fizeram foi criar um bloco de carnaval com seu nome.
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