A reflexão sobre os dias atuais me levou de volta a uma leitura antiga. Refiro-me ao “Discurso da Servidão Voluntária” do francês Étienne de La Boétie, escrito em 1549, quando o autor tinha apenas 18 anos, idade em que parte dos jovens atuais entram na faculdade com escassa capacidade de interpretar textos simples. O livro só foi publicado anos após sua morte prematura aos 33 anos.
O que disse o garoto Étienne, amigo do filósofo e jurista Michel de Moutaigne, que mereça a nossa atenção 470 anos depois? Ele aborda de modo singular e simples um tema eterno – a liberdade, fazendo com que revisemos, considerando os eventos atuais, a compreensão da natureza da tirania e do comportamento das massas escravizadas. Ele dava como certo que, mesmo sendo a “natureza do homem ser livre e desejar sê-lo”, à tirania corresponde um comportamento servil voluntário das massas. Eis um trecho:
“Diga-se, pois, que acaba por ser natural tudo o que o homem obtém pela educação e pelo costume; (…) assim, a primeira razão da servidão voluntária é o hábito: provam-no os cavalos sem rabo que no princípio mordem o freio e acabam depois por brincar com ele; e os mesmos que se rebelavam contra a sela acabam por aceitar a albarda e usam muito ufanos e vaidosos os arreios que os apertam”. Tomando como exemplo a domação de um animal, Étienne acusa a inação humana perante a tirania depois que o tempo a “naturaliza”, como se nesta condição houvesse um certo conforto inibidor da ação primordial de rebeldia contra o jugo.
Pergunto ao leitor se não se sente assim ao sair à rua com o rosto coberto por uma máscara que lhe esconde a própria identidade. De certo modo, concedemos à tirania sanitária que eclode na OMS, por exemplo, nossa representação mais pura e nos acostumamos a isto. Perdemos nossa distinção, estamos nos homogeneizando sob um pedaço de pano e já há quem dele não se desapegue.
Trato da relação do cidadão comum com tudo aquilo que lhe é imposto e com o que não deveria jamais ser negociado. O mesmo raciocínio se aplica, se preferirem, à tirania ambiental, cujos mandatos avançam aos poucos sobre o que se oponha à “urgência climática”, uma criação de ciência torta, jamais provada, mas que pelo medo induz a obediência. Desde os verdadeiros donos do poder global, emanam ordenamentos que estão léguas acima da compreensão da multidão ignara mas lhe alcançam por uma rede de tiranias/servidões chanceladas de cima a baixo por uma sequência infindável de agentes de dentro e de fora do Estado.
Étienne, lembrando o império romano, esclarece os meios utilizados pelos tiranos. Um, é bastante conhecido como a política do pão e circo. Diz ele: “Atrair o pássaro com o apito ou o peixe com a isca do anzol é mais difícil que atrair o povo para a servidão, pois basta passar-lhes junto à boca um engodo insignificante. É espantoso como eles se deixam levar pelas cócegas. Os teatros, os jogos, as farsas, os espetáculos, as feras exóticas, as medalhas, os quadros e outras bugigangas eram para os povos antigos engodos da servidão, preço da liberdade, instrumentos da tirania”. Façamos um exercício simples. Olhemos hoje ao redor, consultemos nossos novos gostos, avaliemos novos costumes e respondamos sinceramente o que teria mudado de Júlio César até aqui. Que bugigangas temos à mão, que circos nos oferecem e quanto de liberdade lhes damos em troca?
A outra forma Étienne, relaciona ao que atualmente chamamos de governança. Por que uma decisão opressora em um folha de papel assinada pela ONU alcança o município mais longínquo da Amazônia no dia seguinte? Por que uma mudança arbitrária num algoritmo inibe ou libera imediatamente a comunicação entre as pessoas nos confins da África? Étienne explica assim:
“Parece à primeira vista incrível, mas é a verdade. São sempre quatro ou cinco os que estão no segredo do tirano, são esses quatro ou cinco que sujeitam o povo à servidão. Sempre foi a uma escassa meia dúzia que o tirano deu ouvidos, foram sempre esses os que lograram aproximar-se dele ou ser por ele convocados, para serem cúmplices das suas crueldades, companheiros dos seus prazeres, alcoviteiros de suas lascívias e com ele beneficiários das rapinas. Tal é a influência deles sobre o caudilho que o povo tem de sofrer não só a maldade dele como também a deles. Essa meia dúzia tem ao seu serviço mais seiscentos que procedem com eles como eles procedem com o tirano. Abaixo destes seiscentos há seis mil devidamente ensinados a quem confiam ora o governo das províncias ora a administração do dinheiro, para que eles ocultem as suas avarezas e crueldades, para serem seus executores no momento combinado e praticarem tais malefícios que só à sombra deles podem sobreviver e não cair sob a alçada da lei e da justiça. E abaixo de todos estes vêm outros”. Vê-se que Étienne identifica a hierarquização da tirania e sua correia de transmissão. Alguma semelhança com as sinecuras e privilégios governamentais, ou com os cargos e representações das organizações internacionais e mega corporações de nosso dia a dia?
Parece claro que temos aí uma via de mão dupla. Se, de cima para baixo há uma tirania sendo exercida, obrigando crescentes concessões, de baixo para cima há uma servidão voluntária movida por também crescentes prêmios de poderes e privilégios. Eis, portanto, a chave para entender o totalitarismo pacificamente implantado em nossas vidas.
Paradoxalmente, para Étienne, os do mais baixo escalão são os mais livres e felizes, pois “embora servos, limitam-se a fazer o que lhes mandam e, feito isso, ficam quites. Os que giram em volta do tirano e mendigam seus favores, não se poderão limitar a fazer o que ele diz, têm de pensar o que ele deseja e, muitas vezes, para ele se dar por satisfeito, têm de lhe adivinhar os pensamentos. Não basta que lhe obedeçam, têm de lhe fazer todas as vontades, têm de se matar de trabalhar nos negócios dele, de ter os gostos que ele tem, de renunciar à sua própria pessoa e de se despojar do que a natureza lhes deu”.
Haveria uma saída para o ciclo de tirania? Segundo Étienne, sim. Bastaria que cada um se recusasse a servir. “Ele (o tirano) será destruído no dia em que o país se recuse a servi-lo. Não é necessário tirar-lhe nada, basta que ninguém lhe dê coisa alguma. Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio, basta que não faça nada contra si próprio. São, pois, os povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem esmagados, pois deixariam de ser no dia em que deixassem de servir. É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios”. Há, creio, também os que, vassalos, nem sequer reconhecem a própria vassalagem e julgam estúpidos os homens que lamentam a liberdade perdida.
É claro que em seu próprio benefício os tiranos não dispensariam as Leis, normas e regulamentos para sustentarem suas decisões. Disto, aliás, tratou Bastiat (A Lei – 1850), ao denominar de lei pervertida aquela que vai em sentido oposto ao que deveria ser – a proteção da liberdade, direito humano natural.
Então, se o leitor quer exercer plenamente a sua liberdade, renuncie à obediência compulsória, seja mouco ao mando arbitrário, meça seu comportamento permissivo ou omissivo em frações de liberdade e decida se vale a pena, vasculhe seu baú moral e tente nele encontrar coragem para enfrentar o monstro que já nem esconde o rosto.
Atenção! Klaus Schwab, o criador e chefão do Fórum Econômico Mundial não estava mentindo quando lançou “A Quarta Revolução Industrial” em 2016 e, menos ainda, em 2020, quando lançou COVID 19 – O GRANDE RESET. Pelo menos não em relação ao que significam.
Valterlucio Bessa Campelo escreve às sextas-feiras no ac24horas e, eventualmente, em seu BLOG e no site LIBERAIS E CONSERVADORES, de Percival Puggina.
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