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Carpinteiros, marceneiros e cozinheiros: acreanos apostam em “dons” para migrar de ramo e sustentar a família

Enquanto centenas de brasileiros perderam seus postos de trabalho durante a pandemia de Covid-19 nos últimos meses, outros tiveram de se reinventar ou adaptar seus dons manuais para conseguir manter o sustento da família. É o caso dos acreanos Francisco Ferreira da Cunha, de 65 anos, Nozemar Leite de Souza, de 58 e Marcelo Eudorico, de 48 anos. A capacidade de criar, construir ou consertar objetos fez com que esses profissionais fossem reconhecidos em seus bairros e cidades como um dos poucos que persistem neste ramo atualmente.



Francisco Ferreira, conhecido como ‘Macucau’, é figura unânime por toda Senador Guiomard, cidade distante cerca de 24 quilômetros da capital acreana, Rio Branco. Por lá, é conhecido como o “rei das panelas” por consertar, cortar e renovar esses e outros utensílios de cozinha. Nozemar ganhou fama com sua fabricação de tábuas para carne e Marcelo tem uma gama de clientes que o procuram todos os dias para comprar churrasquinhos. Todos tiveram de investir na arte manual e experiência de vida para sobreviver em meio a períodos difíceis da economia local.


Ganhar a vida como autônomos e donos do próprio destino não é fácil. Que o diga Macucau, que atua com um serviço por vezes considerado ultrapassado por uma parte da sociedade. Ele sobrevive da carpintaria há mais de 10 anos no mesmo endereço: rua Francisco Leitão, bairro Naire Leite. “Tenho esse apelido desde quando eu trabalhava na Bonal. Matava bastante Nambu (também conhecido como Macucau) para comer porque não tinha mercado perto, nem criávamos galinha, e sobrevivia dos pássaros na floresta. Isso foi em 1986 e até hoje me chamam assim”, conta.



Macucau montou sua oficina de panelas em 2011, após sofrer um acidente de trabalho. “Já trabalhava como carpinteiro, marceneiro, mas me acidentei numa queda de 4 metros onde quebrei meu pé em dois lugares. De tanto fazer esforço, também fui operado três vezes de hérnia e o médico falou que eu não poderia mais mexer nesse trabalho pesado”.


Hoje, ele agradece o dom recebido por Deus. “Consigo mexer com essas coisas agora e me sinto feliz, me sinto bem, fico feliz de ver os clientes serem ajudados por mim”. Ele tinha 55 anos quando começou a trabalhar com sua própria oficina, construída nos fundos de sua casa, localizada em Senador Guiomard, onde nasceu. “Sempre trabalhei muito fora de casa, em fazendas, mas quando terminava o serviço vinha para cá. Consegui conquistar muitos clientes em todos esses anos”.


Apesar de não ser mais um serviço bastante procurado como antigamente, há pessoas que não hesitam em procurar o trabalho de Macucau. “Elas vêm aqui pelo trabalho que eu faço, que é bem feito. Não cobro muito caro. Cobro R$ 15 para cortar uma panela, o que é uma economia se comparado a outras pessoas que abriram o mesmo tipo de oficina aqui, que cobravam mais de R$ 25. As pessoas acabavam correndo para cá e aí foi crescendo minha área de trabalho”.


“Tenho dinheiro para o pão de cada dia”

Seu Francisco afirma que mesmo com dificuldades em conseguir matéria-prima, não tem faltado serviço. “Sempre tenho um dinheirinho para comprar o pão de cada dia”. Macucau corta panela, conserta louças, faz lâmina de roçadeira, cabo de terçado, de faca, de martelo, e até garrafa térmica. A oficina é sua única fonte de renda. “Com ela sustento minha esposa, neta e filhos. Assim vamos indo, aqui, acolá, se alguém precisa de ajuda, também ajudamos”.


Macucau diz emocionado que Deus não tem deixado faltar o alimento através desse trabalho que desempenha com tanto zelo. “Não consigo dizer quantos serviços pego por semana, porque vai chegando um atrás do outro. Às vezes chega panela pela manhã, à tarde chega serrote para amolar, colocar cabo, vários serviços, e assim vou fazendo um e outro”.


O carpinteiro lamenta o fato de nos dias de hoje não se ver mais esse tipo de oficina tão facilmente. Para ele, é mais que um trabalho braçal, mas um verdadeiro artesanato. “Eu gosto de utilizar muitos tipos de coisas que as pessoas acham que não tem mais utilidade e jogam fora. Vou inventando, criando. Aproveito muito algumas coisas, pedaços de cano que encontro por aí”.


O profissional comenta ainda que gostaria que o Departamento Estadual de Água e Saneamento (Deas), situado na capital, e os moradores em geral de sua cidade o ajudassem doando objetos que, para muitos, não servem mais. Isso porque o que alguns jogam fora ou tacam fogo, para Macucau é de grande utilidade. “Acho que as pessoas continuam buscando meus serviços por elas não saberem realmente fazer esses consertos, não terem tempo. Um cliente me falou uma vez que tentou fazer uma garrafa térmica e tinha passado quatro dias tentando fazer, mas foi obrigado a quebrar tudo, jogar fora e me procurar”.


Transformando lixo em utilidade

O carpinteiro já tem seus trabalhos vendidos para fora do Acre. “Vendi duas garrafas térmicas para moradores do Pará e uma foi para o Rio de Janeiro, por pessoas que me conheceram através da minha família”. Ele não quer parar e pretende investir em novas criações. Mas um problema acaba atrapalhando: a falta material. “Às vezes falta material suficiente, máquinas. Me imagino fazendo muitas coisas, mas não tenho materiais suficientes para fazer aquilo que me vem nas ideias”.


Como exemplo do problema, ele citou a fabricação de cabos de faca e terçado, que já está quase parando nessa semana por falta de material. “Me viro por aí, juntando objetos, às vezes as pessoas veem um pedaço de cano e trazem pra mim. Daí vou utilizando ao invés de jogar fora”.



Ele ressalta que o poder público poderia ajudá-lo assegurando objetos jogados junto ao Deas. “Se guardassem e eu pudesse ir buscar, seria muito bom, porque comprar um cano é inviável, custa muito caro e não tem como. Nossa renda é pouca e queria muito que eles pudessem me ajudar dessa forma”. Outra iniciativa que está nos sonhos de Macucau é ensinar aos jovens estudantes a carpintaria e a marcenaria. “Eu aprendi isso na escola com o grêmio estudantil. Aperfeiçoei o dom que Deus me deu porque na minha época, quando aqui ainda era Quinari, nos ensinavam esse tipo de trabalho fora do horário de aula”. Não só ele, mas outros amigos da escola optaram por seguir atuando no ramo da carpintaria.


“Fazia isso e gostava muito, tanto que gosto até hoje e estou trabalhando com isso. Igual essa minha oficina aqui só tem a minha na cidade. Atendo pessoas de Capixaba, Brasileia, Rio Branco, Plácido de Castro e assim vou ajudando as pessoas. Essa semana mesmo chegaram dois sacos de panela aqui”, afirma.


De tão querido na cidade, Macucau já foi chamado para se candidatar a vereador pelo menos 12 vezes, mas nunca quis. “Já trabalhei reformava delegacias, mexendo com portas e janelas, trabalhei no presídio do município. Fui muito bem avaliado aqui por três engenheiros importantes do estado, que quiseram até me levar para fora. Trabalhei em grandes construtoras. Então, essa é uma área que eu gosto muito e tenho grande conhecimento na carpintaria”.


O trabalhador se orgulha em reutilizar objetos que seriam jogados fora para dar uma utilidade nova. “Se eu tivesse material suficiente, faria mais coisas ainda. Hoje em dia a madeira está muito difícil de conseguir, mas as pessoas admiram muito meu trabalho. Tudo que eu vejo eu gosto de reformar. Ao invés de comprar uma cadeira nova, que é praticamente descartável nos dias de hoje, prefiro reformar uma e ficar com ela por mais tempo. De tudo eu faço um pouco e gosto de fazer”, conclui.


Hobby que virou renda extra

Nozemar Souza começou a fabricar tábuas de cortar carne com madeira há cerca de dois anos, logo no início da pandemia de Covid-19. Além disso, se dedicou a trabalhar com suporte de facas e plantas. “A pandemia que me despertou isso. Estava na minha casa um certo dia e pensei: vou já fazer um brinquedo de madeira para minha neta. E aí comecei a fazer umas mesinhas, umas camas e fiz uma pirâmide para minha esposa colocar as plantas”.



A partir de então, ele tomou gosto pelo serviço e como ele mesmo diz, se descobriu na marcenaria. “Era um hobby que persistiu e faço até hoje. Construo tábua para cortar, tábua para colocar frios e divulgo tudo que faço na internet”. O trabalho que começou por questão de necessidade financeira rapidamente tomou espaço na vida de Nozemar. Seus artesanatos são peças fundamentais para o sustento da família. “Hoje, continua sendo uma renda extra, mas também uma maneira de esfriar a cabeça, de relaxar. Sustento pelo menos quatro pessoas com isso, eu, meus filhos, minha sogra, esposa, e as netas”.



A dificuldade que ele encara também é a de materiais. “Às vezes não tenho material adequado, faço quase tudo na mão mesmo e também o barulho, o pó pode incomodar os vizinhos. Por isso, tenho horário certo para eu trabalhar, tentando incomodar o menos possível para não ter confusão com ninguém”.


O carro-chefe desse negócio é a venda das tábuas para cortar carne e os suportes de facas. O negócio vem dando tão certo que já pensa em voos mais altos. “Estou pensando em procurar um local, um terreno para começar a fazer uma oficina maior e expandir. Não pretendo ficar só trabalhando em casa, não. Já que descobri esse dom que Deus me deu, quero expandir, sim”, diz Nozemar, que recebe pedidos pelo (68) 9977-8666.


Espetinho da Morada

Marcelo Eudorico, de 28 anos, retomou a venda de churrasquinhos em sua casa, localizada no bairro Morada do Sol, em Rio Branco, também na pandemia. Em seu caso, uma questão de saúde devido a problemas cardíacos o fez migrar de ramo. “Encontrei na venda de churrasquinho a oportunidade de não ter tanto esforço físico, por recomendação médica, e tentar ganhar dinheiro”. Há 12 anos, ele também já teve uma experiência de sucesso com churrasquinhos, por isso, decidiu voltar à área.


“Era no mesmo bairro que eu vendia, mas em outro local. Com isso, fidelizei muitos clientes, que mesmo depois de muitos anos sempre perguntavam pelo nosso churrasquinho”. Seu antigo trabalho acarretava estresse extremo e como sempre se identificou com a culinária, resolveu investir no ramo. “É um toque a mais que a gente tem e que agradou as pessoas”.


Ocorre que cerca de oito meses depois de reabrir a venda de churrasquinhos, a pandemia se agravou e ele teve de se reinventar com a implantação do delivery. No começo, as vendas se davam em sua maioria por drive-thru. “Mas já tive momentos, quando estava em lockdown, de a gente ter que parar tudo mesmo. Parecia que estávamos fazendo algo errado. Foi bem difícil”.


Hoje, toda sua renda financeira vem da venda dos churrascos. O segredo da casa são os molhos e pastas e chega a comercializar até 250 espetinhos por noite. Com o sucesso nas vendas, Marcelo já conseguiu empregar sete pessoas diretamente. “Indiretamente tem toda uma cadeia, como fornecedores de carvão, etc. Aqui a gente trabalha com uma variedade de espetinhos, como frango, carne, coração de frango, queijo coalho, mas o carro-chefe é a kafta no pão”, destaca.



Ele acredita que a grande quantidade de clientes vem, primeiramente, pela sua fé em Deus. “A gente acredita todo dia que tudo Deus pode, mas creio também que acrescentamos no paladar das pessoas”. Nesse ano, ele já teve oportunidade de expandir o empreendimento, mas com receio de um novo pico de contaminação do coronavírus, preferiu aguardar. “Estamos num momento pós-pandemia, tudo valorizou muito, triplicaram os valores. Pagava R$ 14 num quilo de carne, hoje pago R$ 30, então estou aguardando o momento certo”.


Para ele, a inflação é a grande vilã do seu negócio. “Hoje o que dificulta é o fato de sermos diariamente surpreendidos com algo diferente, como aumento do preço da gasolina, dos ingredientes, e não podemos estar atualizando a tabela dos nossos preços todo dia, repassar ao cliente, temos que respeitar e ficamos nessa situação”. Apesar de o churrasquinho funcionar no Morada do Sol, ele atende clientes em todos os bairros acessíveis pelos aplicativos de entrega em Rio Branco.