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Mulher, preta, pobre, analfabeta e assassina…

Por
Astério Moreira

Certo dia, minha mãe me chamou e disse:


“Leve este prato de comida para a dona Maria que está presa na delegacia, vá com todo cuidado para não derrubar a comida nem quebrar o prato”.


No início da década de 70, tinha apenas dez anos. Da minha casa até a delegacia fiquei com muito medo, ansioso e angustiado. No caminho imaginava que a dona Maria poderia me matar dentro da cela, já que a comida seria entregue em suas mãos. Poderia me agarrar, me machucar. Ela era uma assassina.


A história que corria entre os meninos é que ela matou o marido a machadadas quando ele dormia em uma rede. Diziam que aconteceu no seringal, às margens do rio Acre. Eu imaginava o som do machado no crânio e o sangue escorrendo da rede. Um horror. E se ela tivesse um machado dentro da cela?


Na delegacia a vi na penumbra da cela. Era bem preta, olhos azuis da cor do céu, os dentes brancos, alvos. Bem branquinhos mesmo.


Ela recebeu o prato, colocou a comida em outra vasilha e me agradeceu com um “muito obrigado, meu filho”. Me olhou com ternura e gratidão, com pena do meu jeito desengonçado e medroso de menino. Aquele encontro marcou minha vida.


Saí de lá alegre. Estava vivo e não era o que eu imaginava. Vi naquela mulher uma tristeza infinita, também vi bondade e amor que caminharam comigo por toda a vida. Como poderia ter matado o marido com um machado?


Soube depois, nas histórias contadas na cidade, que ele bebia muito, abusava dela, espancava até que desmaiasse. Foi surrada por anos a fio. Um dia, ela não suportou. Ele chegou bêbado e a espancou muito, deitou na rede como de costume. De mão do machado, ela partiu seu crânio com toda a fúria dos condenados. A machadada era o caminho para a liberdade. Um paradoxo.


Anos depois assisti “A Cor Púrpura”, (Steven Spielberg – 1985). Vi em dona Celie (Whoopi Goldberg) a dona Maria. A mesma tristeza, a mesma dor, o mesmo sofrimento, a mesma pureza. Chorei, chorei lembrando dela…como um homem deve chorar. Com toda a força de sua alma para expressar a mesma dor. Um homem deve amar suas dores, perdas e decepções. São as cicatrizes da guerra.


Bem que eu poderia, lá no passado, naquela cela da delegacia, ter abraçado a dona Maria. Sentar-me em seu colo, acariciar seus cabelos e beijá-la. Não o fiz por preconceito, por medo. Afinal de contas era só uma mulher preta, pobre, analfabeta. Uma assassina.


Desde então fiquei preso ao seu olhar azul. Um azul de doer nos olhos da gente. Fiquei preso ao seu sorriso, à sua pele negra. A sua ternura e a sua alma.


Anos depois soube que ela estava bem. Cuidou da delegacia, dos policiais e até dos outros presos. Foi liberta, se integrou à comunidade, se tornou lavadeira. Era amada por todos, conquistou muitos corações como fizera comigo.


“Porque muito amou, seus muitos erros foram perdoados”, disse Jesus, o jovem pregador Galileu, que veio falar de amor aos homens. O nome de sua mãe era Maria.


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Astério Moreira

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