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Quinze anos da Lei Maria da Penha

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Por Olívia Ribeiro


Em 2012, quando a Lei 11.340/06 completou seis anos de sua promulgação, escrevi o artigo intitulado: Seis anos da Lei Maria da Penha: O que mudou? Em que mudou? Será que mudou? Ao finalizá-lo, me propus reescrevê-lo, seis anos depois, sob outro viés, na esperança de não mais apontar as estatísticas mencionadas, e que as questões nele referidas fossem apenas uma amostra de um período de mudanças e transformações.

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Passados nove anos da edição do artigo, e agora quinze anos da promulgação da lei, quero registrar aqui não apenas os avanços no combate à violência contra a mulher, mas a trajetória, as dificuldades, os desafios e as superações da 1ª Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar, criada no âmbito do Poder Judiciário do Acre, em 06/01/2008.


De início, e até para que possamos fazer uma comparação contextual, faço a transcrição do artigo escrito à época: “Seis anos da Lei Maria da Penha: O que mudou? Em que mudou? Será que mudou? A lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, sancionada no dia 07 de agosto de 2006 e em vigor desde 22 de setembro do mesmo ano, faz aniversário nesta terça-feira.


Não obstante o cunho social de que se reveste, e embora tenha surgido como instrumento de mudança política, jurídica e cultural, porquanto caracterizou a violência doméstica e familiar como violação dos direitos humanos e se propôs promover uma mudança real nos valores sociais que naturalizam a violência contra a mulher, em que os modelos de dominação masculina e subordinação feminina, durante séculos, foram aceitos pela sociedade, muito ainda há que ser feito para que a Lei Maria da Penha alcance os fins almejados e não se torne uma lei em desuso como tantas outras neste país.


1. Breve contextualização da violência contra a mulher


A violência contra a mulher não é um fato da sociedade moderna. Embora só nas últimas décadas tenha sido visibilizada publicamente, já na escravatura, durante o Império e nos períodos subsequentes, a mulher era objeto de dominação masculina, sofrendo agressões de toda ordem, as quais eram restritas ao âmbito doméstico e familiar, exteriorizando-se mais na sua forma física, em particular, a sexual.


A tênue mudança, ao longo de décadas, ocorreu apenas na visualização da mulher e na natureza da agressão. Antes, apenas um ser carnal, objeto de desejo, sem vontade própria, o que pode ser sentido, por exemplo, na novela Gabriela, reprisada, no momento, pela Rede Globo. Após, com os movimentos feministas, nas décadas de 70 e 80, apesar de a mulher passar a ter vontade própria, continuou sendo vista como um ser inferiorizado, desqualificado, principalmente para o mercado de trabalho. E a violência saiu do âmbito doméstico e familiar, na sua forma física, para alcançar outras áreas e se materializar de outras formas, como a violência moral, psicológica, patrimonial… O fenômeno da violência contra a mulher, seja ela de qualquer natureza, e ainda que fora do âmbito doméstico e familiar, é inerente ao padrão das organizações desiguais de gênero, as quais são tão estruturais quanto a divisão da sociedade em classes sociais, ou seja, o gênero, a classe e a raça/etnia são igualmente estruturantes das relações sociais. Na realidade, as diferenças entre homens e mulheres têm sido sistematicamente convertidas em desigualdades em detrimento do gênero feminino, sendo a violência contra mulher, na esfera familiar e doméstica, a sua face mais cruel.


No Brasil, além da violência física, sexual, moral, psicológica e patrimonial, as quais ocorrem frequentemente dentro dos lares, de regra entre quatro paredes, praticadas por companheiros/esposos, namorados, amantes, filhos, pais, parentes próximos ou por aqueles que já tiveram com as vítimas uma relação de afeto (o que as tornam mais vulneráveis a estas práticas), as vítimas sofrem, também, a violência social disfarçada, que se reflete fortemente no dia a dia de todas as mulheres fora de suas casas, fazendo com que sejam discriminadas na vida pública, na escola, no trânsito, nos salários inferiores aos dos homens, na maior dificuldade de ingresso no mercado de trabalho etc.


Quando se trata de agressão física no âmbito familiar e doméstico, as mulheres sofrem, ainda, violência no atendimento do sistema de rede, ante a falta de conhecimento e capacitação das pessoas que lidam com a causa. Além disso, são vítimas da discriminação e do corporativismo da maioria dos agentes policiais das DEAMs, os quais, seja intencionalmente ou não, demonstram não estar aptos a compreender a dinâmica da violência vivenciada por elas e, em algumas vezes, até mesmo fazem pouco caso dos atos de violência sofridos pelas mesmas, contribuindo para que sejam ainda mais vitimizadas.


A constatação que se chega é que esses profissionais têm dificuldade em lidar com fenômenos dessa natureza por estarem inseridos na mesma estrutura social e cultural de relações e de simbolizações do gênero, origem de variados tipos de violência contra as mulheres. É exatamente essa estrutura, a qual desvaloriza as mulheres, que norteia as concepções e práticas desses profissionais.


2. O cenário nacional após a lei

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A lei 11.340/2006 foi considerada pelo UNIFEM (Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher) como uma das legislações mais avançadas do mundo. Não obstante esse seu caráter inovador e os esforços até aqui empreendidos, a violência contra a mulher está longe de deixar de ser uma realidade na vida da grande maioria das mulheres brasileiras, principalmente das pobres e negras. Para muitas, o ciclo de violência por elas vivido em nada alterou após a edição da lei, o qual permaneceu camuflado no interior dos lares de milhões de brasileiras.


Essa realidade decorre, dentre vários fatores, da falta de informação acerca da lei e do seu conteúdo (94% das mulheres já ouviram falar da Lei Maria da Penha, mas apenas 13% sabem do seu conteúdo), bem como do desconhecimento dos direitos que lhes amparam e, ainda e principalmente, da cultura patriarcal e machista,
incorporada na sociedade desde o início das civilizações, a qual oprime e violenta as mulheres, na medida em que, embora homens e mulheres nasçam iguais, a sociedade impõe papéis diferenciados para ambos os sexos, prevalecendo, em todos os aspectos, a superioridade daqueles sobre estas, terminando por incutir nestas, como efeito mais maléfico, a concepção de que a submissão é inerente à condição de mulher.


As pesquisas revelam dados alarmantes acerca da violência contra a mulher, apontando o Brasil, num ranking de 92 países, como um dos mais violentos do mundo, perdendo apenas para El Salvador, Venezuela e Guatemala (ressalte-se que esses países têm economia menor que a brasileira, a qual, atualmente, é a 6ª maior do mundo, segundo o PIB).


A questão da violência contra a mulher no Brasil se mostra tão acentuada que comparada aos dados divulgados pela Agência Patrícia Galvão, em 08/04/2012, onde revelam que, na África do Sul, uma mulher é violentada a cada 27 segundos, em nosso país esse tempo é reduzido para 15 segundos. No que atine à violência física, uma pesquisa divulgada pelo Instituto Sangari, cujos dados foram apresentados no programa Fantástico do dia 06 de maio do ano em curso, o Brasil é apontado, dentre 87 países pesquisados, o sétimo onde mais matam mulheres, sendo 4,4 assassinatos em cada grupo de 100 mil mulheres. Nesse cenário, o Estado do Espírito Santo é apontado como o mais violento, com 9,4 homicídios por 100 mil mulheres e o do Piauí como o menos violente, com 2,6 homicídios por 100 mil mulheres. Os dados revelam, ainda, que essas mortes se concentram, preponderantemente, na faixa etária entre 20 e 29 anos (com 7,7 mulheres assassinadas por 100 mil habitantes femininas) e, na maioria dos casos, o assassino é o próprio cônjuge ou companheiro/ex-companheiro, tendo como causas mais comum: o álcool, a droga e o ciúme.


A nova edição do Mapa da Violência, elaborada pelo sociólogo argentino Julio Jacobo Waiselfisz, editado pela Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso) e o Centro Brasileiro de Estudos Latino-americanos (Cebela), publicada no dia 18 de julho próximo passado, alerta para o que está sendo chamado de epidemia da violência contra crianças e adolescentes no Brasil (14 crianças são abusadas sexualmente a cada dia no país).


Os dados aqui apresentados confirmam o que as mulheres brasileiras revelaram em uma pesquisa divulgada pelo  DataSenado, no dia 01 de março de 2011, quando 66% declarou que a violência doméstica e familiar aumentou após a promulgação da lei. Esse diagnóstico é confirmado pelos números divulgados pelo Jornal O Estadão, no dia 23 de maio deste ano, quando revelou que em 2011 48.152 mil mulheres foram vítima de agressão no país, o que mostra que mesmo após um ano da realização da pesquisa, a realidade continua a mesma.


No Acre, os dados constantes da Vara (a única com competência privativa na capital do Estado) revelam que a realidade não é diferente. Conforme levantamento feito, no interregno de 04 (quatro) anos (29.02.2008 a 29.02.2012), a Vara de Violência Doméstica e Familiar da Comarca de Rio Branco registrou um acervo processual de 19.225 feitos, assim distribuídos: 6.592 inquéritos policiais; 1.083 ações penais e 9.503 medidas protetivas (nesta data a Vara aponta um acervo de 20.120 feitos distribuídos, dos quais 14.141 já foram julgados/encerrados). Ressalte-se que esses dados são apenas da capital, não se tendo o retrato da violência no interior do estado.


3. As causas da chamada epidemia da violência


Não se pretende neste tópico esmiuçar todos os aspectos que estão contribuindo para a ascensão da violência no âmbito doméstico e familiar, até porque demandaria tempo e análise mais acurada de cada questão, o que não comporta neste artigo. Urge, porém, que façamos como fazem os técnicos quando seus times estão perdendo: pedir um tempo para reavaliar tudo o que foi e está sendo feito até aqui.


Seis anos se passaram e os números aqui referidos demonstram que não obstante a Constituição de 1988 preconize que: homens e mulheres são iguais perante a Lei, e apesar do avanço com a promulgação da Lei n. 11.340/2006, as leis da força física, da desigualdade de gênero e do preconceito ainda imperam. Apesar de a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhecer que a violência é um problema de saúde pública e que o crescimento dos índices de violência adquiriu característica de epidemia, saúde e violência se apresentam, ainda hoje, de forma muito isolada afirma Diego Victoria Mejeía, representante da OPAS/OMS do Brasil.


É evidente que, apesar de as prioridades de saúde serem determinadas pelas condições de vida da população, a violência à mulher (aqui incluídas crianças e adolescentes), ainda não é uma prioridade da saúde pública. As autoridades brasileiras ainda não despertaram para esse problema. Enquanto isso, os gastos no SUS com o atendimento às mulheres vítimas de violência são assustadores. Segundo dados do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento, cada 05 dias de falta ao trabalho, no mundo, é causado pela violência sofrida pelas mulheres dentro de suas casas, o que representa um custo de 1,6% a 2% do PIB de um país. Nos Estados Unidos isso representa US$ 5 bilhões a US$10 bilhões ao ano. No Brasil, segundo Flávia Piovesan e Sílvia Pimentel, a violência contra a mulher custa ao país 10,5% do PIB. Ressalte-se que esses dados não refletem a efetiva realidade brasileira, na medida em que, apesar da obrigatoriedade da notificação da violência familiar e doméstica, nem sempre os profissionais de saúde fazem essa notificação às Secretarias Estadual e Municipal de Saúde.


Não podemos esquecer que as causas da violência familiar e doméstica, na grande maioria o uso de drogas lícitas e ilícitas, são questões de saúde pública e, portanto, refogem aos aspectos jurídicos e legislativos. São poucos os estados que dispõem de Centros de Tratamento e Recuperação. Quantas vezes tenho ouvido de uma vítima: “Doutora, eu não quero que a Senhora prenda meu marido (meu filho… meu neto…), quero, apenas, que a Senhora trate dele porque eu já não sei mais o que fazer”. E eu, em silêncio, pergunto-me: Faço o que? Trato como? De que forma? Mando pra onde? É claro que fazemos encaminhamento para instituições filantrópicas (de regra instituições religiosas), mas isso não é suficiente, na medida em que essas instituições são muito carentes, não dispõem de profissionais de saúde, de medicamentos, de estrutura adequada, e o encaminhamento, muitas vezes, é um mero paliativo, servindo apenas de um “período de férias” para a família. Quiçá tivéssemos, nós magistrados, a solução para todas as mazelas que nos são postas no dia a dia.


As leis brandas também se constituem em incentivo à violência. Em que pese as mudanças havidas nos Códigos Penal e Processo Penal com a promulgação da lei 11.340/2006 e da lei 12.234/2010, que alterou os prazos prescricionais, as penas são muito brandas. Neste aspecto, vale mencionar, para fins comparativos, a pena fixada, por homicídio, na Guatemala, a qual varia de 25 a 50 anos, e por lesão corporal (um dos delitos mais comuns no âmbito da violência doméstica e familiar no Brasil), que varia de 5 a 12 anos. No Brasil, sequer o magistrado poderia fixar uma pena nesse patamar, na medida em que a pena para o delito de lesão corporal praticado no âmbito doméstico e familiar varia de 03 meses a 03 anos (art. 129, § 9º, do CP).


A estrutura deficitária das Varas/Juizados, DEAMs, Defensorias Públicas, Centros de Referência, Casas Abrigo, também se constitui em um dos entraves no combate à violência doméstica e Familiar. Dados constantes da Secretaria de Política para as mulheres, do Governo Federal, revelam que o Brasil tem mais de 5.500 municípios e apenas: 190 Centros de Referência (atenção social, psicológica e orientação jurídica); 72 Casas Abrigo; 466 Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher; 93 Juizados Especializados e Varas adaptadas; 57 Defensorias e 21 Promotorias Especializadas.


No estado do Acre, especificamente na capital do estado, há apenas uma Delegacia Especializada no atendimento à mulher (com 7 delegados trabalhando em sistema de plantão); uma Vara com competência privativa (com uma magistrada); uma Promotoria (com uma Promotora) e duas defensoras (uma para as vítimas e outras para os agressores). Acrescente-se à falta de estrutura (compatível com a demanda), a frágil rede disponível de serviços de prevenção e combate à violência contra a mulher. Aliado a isso, falta integração, sensibilização e capacitação das pessoas que atuam no sistema de rede.


Não há uma atuação integrada (nos três poderes) dos órgãos que atuam com a questão (cada um faz do seu jeito e do seu modo, muitas vezes até repetindo o que o outro já fez ou está fazendo). A falta de sensibilidade e capacitação, a começar pelos agentes policiais que trabalham nas DEAMs (porta de entrada do serviço de rede) leva, muitas vezes, à revitimização das vítimas. É comum as vítimas serem atendidas por pessoas que sequer conhecem a lei (quando a conhecem, é apenas por ouviu dizer) ou, muitas vezes, por autores de violência, os quais a exteriorizam já no trato inicial com a vítima.


No âmbito da sensibilização, também se incluem magistrados, promotores, defensores e advogados. Com todo respeito ao entendimento de cada profissional, e observadas as devidas proporções, considero um paradoxo, por exemplo, o uso do princípio da insignificância (que não se confunde com o princípio da irrelevância penal) nos delitos de violência doméstica e familiar para absolver os agressores.


A questão do Sistema Carcerário, o qual não é diferente dos demais estados, também contribui para o agravamento da violência. Além da superlotação, não há celas reservadas aos presos temporários por crimes praticados no âmbito doméstico e familiar, o que contribui para que os agressores se tornem ainda mais violentos em face da experiência vivida dentro dos Presídios. Raros são os casos em que o agressor, ao sair do presídio, não volta a agredir a vítima; na grande maioria das vezes o ato de violência é mais grave que o praticado anteriormente à prisão. Isso revela, por outro lado, que apenas a repressão, seja com prisões ou medidas de afastamento ou de proibição, não é instrumento hábil para conter a violência.


É preciso trabalhar a prevenção, a conscientização, a desmistificação da cultura. Neste aspecto, em que pese uma mulher tenha chegado ao topo, assumindo a presidência da nação, não só no Brasil, mas em diversos outros países, ainda predomina o sentimento, em maior ou menor escala, de que a mulher goza de um status de inferioridade ao do homem, o que é expresso nos costumes, nas piadas, nas propagandas, nos programas televisivos… Aliás, a imprensa, seja falada, escrita ou televisada, ainda tem contribuído, em muito, para a disseminação da cultura da dominação masculina e da desvalorização da mulher. A fragilidade feminina, decorrente da própria questão cultural, aliada ao medo, à dependência econômica e de sentimento, tem se constituído em grande fator para que a violência contra a mulher continue envolta em silêncio e medo, sem extrapolar as barreiras do lar. Penso, entretanto, que não é com a intervenção estatal, como decidiu o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI 4424), que vai se tirar a vítima da situação de fragilidade e dependência. Muito pelo contrário, com todo respeito à decisão da Suprema Corte, ao meu sentir a mesma servirá (e já está servindo, o dia a dia tem revelado isso) para desencorajar ainda mais as vítimas, na medida em que, sabendo da possibilidade de que o esposo/companheiro (do qual não tem pretensão de separar-se) poderá ser preso e sofrer uma condenação, não mais procurará as autoridades policiais para denunciar as agressões, as quais continuarão camufladas no seio do lar.


Entender que cabe ao estado adentrar no núcleo familiar e/ou doméstico para proteger mulheres que se encontram em posição de vulnerabilidade não é o melhor caminho. A experiência vivida à frente de uma Vara de Violência Doméstica e Familiar tem revelado que o princípio da intervenção mínima continua sendo a melhor
solução. A questão da vulnerabilidade deve ser tratada/trabalhada com políticas públicas de prevenção, conscientização, assistência e acompanhamento da vítima pelo sistema de rede. Infelizmente, as políticas públicas no combate à violência se mostram ainda ineficientes ou mesmo inexistentes, havendo poucos serviços disponíveis e uma carência de profissionais capacitados e sensibilizados para atuarem junto a esta problemática. A CPI da violência tem constatado isso.


4. Conclusão


A necessidade de edição da lei 11.340/2006 apenas revelou o nível da cultura brasileira no que diz respeito à questão da violência contra a mulher. Precisou se ter uma lei para dizer que em mulher não se bate, que sua integridade física, moral e intelectual deve ser preservada. O fato de essas garantias constarem do texto constitucional, desde 1988, não foi suficiente; fez-se necessário trazer a questão para o âmbito infraconstitucional. Mas, ainda assim, e apesar dos esforços do CNJ, que tem atuado, ao longo dos últimos cinco anos, na divulgação da lei e no monitoramento de sua eficácia e aplicabilidade no âmbito dos tribunais, exigindo-lhes a criação e instalação de Varas e Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, bem como a instalação e estruturação das coordenadorias criadas por força da Res. nº 128, ainda há um longo caminho a percorrer para que a Lei Maria da Penha se torne uma realidade na vida das mulheres brasileira vítimas de violência doméstica e familiar.


Dizer, porém, que tudo continua como dantes também seria muito pessimismo. O primeiro resultado, que considero por demais positivo, foi tornar público, através das estatísticas, uma realidade que, embora a sociedade dela tivesse conhecimento, teimava por dela não querer saber. A agressão, que antes pesava apenas no bolso, com o pagamento de cestas básicas nas transações dos Juizados, passou a custar uma restrição à liberdade (prisão preventiva) ou uma restrição ao convívio do lar (medida de afastamento) retirando o agressor, ainda que provisoriamente, de sua zona de conforto.


Não há como deixar de reconhecer as inovações trazidas ao sistema jurídico brasileiro pela lei 11.340/2006, dada a sua natureza híbrida, com a introdução de novos tipos penais e de outras áreas do direito, como: civil, previdenciário, trabalhista, e até administrativo, dentro do mesmo texto legal, com o estabelecimento de medidas de proteção à vítima e de proibição ao agressor afetas a essas áreas, como, por exemplo, a suspensão da posse ou restrição do porte de arma; a determinação ao órgão empregador do afastamento temporário da vítima do emprego; a participação da vítima em cursos profissionalizantes; a proibição de o agressor celebrar contratos de compra, venda e locação de imóvel, etc. Além de representar uma ousada proposta de mudança cultural e jurídica, a lei busca erradicar a violência praticada por homens contra mulheres com quem mantêm vínculos consanguíneos ou de afetividade. Podemos afirmar, então, que a nível de legislação estamos muito bem. Mas o que falta, então, para tornar a lei Maria da Penha efetiva? Por que a violência contra a mulher no âmbito familiar e doméstico continua em ascensão? Faltam conscientização e disseminação de uma nova cultura: a cultura da paz (a começar pelas crianças nas escolas. As mudanças não acontecerão se as novas gerações não forem educadas sob esse paradigma). Falta o envolvimento da sociedade com a causa (o combate á violência é dever de todos (art. 3º, § 2º, da Lei 11.340/2006). Falta maior compromisso daqueles que estão envolvidos com a problemática. Faltam sensibilização e capacitação dos que atuam mais diretamente na área (vítimas são tratadas com indiferença, muitas vezes até desencorajadas a denunciar seus agressores, contribuindo para a revitimização). Falta uma mudança na legislação penal (com  imposição de penas mais severas). Faltam mais políticas públicas, com instituições estruturadas para que possam garantir a efetividade e eficácia da lei, tratando não apenas da vítima, mas também do agressor, que não deixa de ser também uma vítima do sistema cultural e educacional machista que não o permite demonstrar fraqueza, não o permite chorar.


O Jurista e ex-ministro do TSE, Fernando Neves, disse recentemente em uma entrevista ao Jornal Gazeta do Povo (edição de 20/07/2012) que eleição ideal é aquela que não tenha nenhum processo depois. E eu diria, mudando o que deve ser mudado, que o ideal seria não haver violência contra a mulher e lei fixando pena, estabelecendo medidas de repressão e prevenção para casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Quem sabe daqui a mais seis anos eu possa estar reescrevendo este artigo, sob outro viés, sem apontar as estatísticas aqui mencionadas, e que as questões aqui abordadas sirvam apenas para mostrar um período da história: um período de mudanças, de transformações. É o que espero”.


I – A criação da Vara de Violência Doméstica e Familiar na capital do Estado: dificuldades, desafios e superações. 


Passado um ano e meio da promulgação da Lei 11.340, de 07/08/2006, e num cenário bastante conturbado, com um índice de violência bem mais agravado do que o descrito seis anos depois no artigo acima, em que o Acre despontava dentre os Estados mais violentos na área, o Tribunal de Justiça, cumprindo exigências do Conselho Nacional de Justiça, para que se instalasse em todo o país os Juizados de Violência Doméstica e Familiar, editou, em 06/01/2008, a Resolução nº 129, através da qual tornou a 5ª Vara Criminal da Comarca de Rio Branco especializada em violência doméstica e familiar contra a mulher, passando a denomina-la, nos termos do art. 2º da referida Resolução, Vara de Violência Doméstica e Familiar. Sessenta dias depois era instalada a 1ª Vara Especializada no Estado, sendo também a primeira Vara virtual no país, com processos totalmente eletrônicos (art. 3º da Res. 129/2008).


Para a instalação da Vara, diante da falta de servidor e das dificuldades orçamentárias (que não são de hoje), o Tribunal de Justiça, que contava à época com duas mulheres ousadas à frente da administração, Desa. Izaura Maia na Presidência e Desa Eva Evangelista na Corregedoria, buscou ajuda junto ao Ministério da Justiça, que doou, através da Secretaria de Reforma do Judiciário, computadores para a Unidade. Contando com a ajuda e compreensão dos juízes e diretores do Tribunal, que cederam alguns de seus servidores, formou a primeira equipe na nova Unidade. Com o pacote de doação dos computadores, veio também o PROJUD, sistema criado para os Juizados Especiais, porém muito difícil de execução dada a natureza hibrida da matéria.


À frente da Unidade, enquanto não era titularizado/a o/a primeiro/a magistrado/a, ficaram os então Juizes Laudivon Nogueira, titular da 2ª Vara de Família, e Regina Longuini, titular da 2ª Vara da Fazenda Pública que, cumulando com as atividades de suas Unidades, em muito contribuíram naquele primeiro momento. À época, havia muito preconceito em torno do tema e era uma área que nenhum magistrado tinha simpatia para atuar, dado o volume de demanda e o índice de reincidência. Os juízes das Varas Criminais, que cumulavam as questões de violência doméstica e familiar, aguardavam ansiosos o dia em que pudessem se livrar do acervo. Nesse cenário, Presidente e Corregedora, preocupadas se haveria juiz/juíza interessado/a em concorrer à titularidade da Unidade (as inscrições estavam abertas e não havia inscritos), convidaram-me para uma reunião na Corregedoria.


Na ocasião, eu era a titular da 4ª Vara Cível. Lá chegando, Desa Eva expôs as preocupações da Administração na titularidade do magistrado, as dificuldades e os desafios que viriam pela frente, e se eu estava disposta a encarar, pois entendia que eu tinha perfil para a Unidade. Indaguei-lhe qual o tempo que tinha para responder. Ela, incisiva (como sempre), disse-me que não havia tempo a pensar, pois haveria um encontro em Brasília, com os juízes dos Juizados e Varas de Violência Doméstica de todo pais, e precisavam mandar o/a Juiz/a do Acre. Dalí já saímos para o gabinete da Presidente, ficando certo, naquela ocasião, que eu apresentaria pedido de remoção da 4ª Vara Cível para a Vara de Violência Doméstica. Ao retornar à Vara e dar a notícia aos servidores, todos ficaram apreensivos e, naquele momento, já passei a dividir a equipe: quem iria e quem permaneceria.


No dia seguinte, já me deparei com as duas colegas mais próximas de mim, à época, as Juízas Penha e Regina, as quais, preocupadas com a decisão que eu estava tomando, tentavam me desencorajar e, ao tempo em que ponderavam para que eu refletisse acerca da situação cômoda em que me encontrava, com uma equipe formada e um acervo administrável, apontavam questões que levavam à apreensão, não só diante da problemática em torno da matéria, mas da grande demanda que me aguardava. Eu entendi, naquele momento, que as reações de ambas eram muito mais de saudosismos, pois compartilhávamos, diariamente, o café da manhã. Ir para outra  Vara, no Segundo Distrito da cidade, era como se fosse para outra comarca, outro estado. MAS, o compromisso estava assumido e eu não podia retroceder. E lá fui eu, cônscia dos percalços e dificuldades que me esperavam, mas confiante e apostando no esforço e abnegação da equipe de servidores que levava e que se somaria aos poucos que lá já se encontravam.


Através da Portaria 981/2008, de 09/10/2008, removida pelo critério de merecimento, fui a primeira juíza titular da Vara de Violência Doméstica no Estado, porém, por força da Portaria 984, de 13/10/2008, continuei com competência prorrogada para a 4ª Vara Cível até a escolha de seu novo titular, Dr. Marcelo Coelho.


Já no início, participando de um encontro no Conselho Nacional de Justiça, com magistrados dos demais Estados, onde seria apresentado um balanço do primeiro ano de implantação dos Juizados onde já haviam sido implantados, bem como tratada da situação dos estados que ainda não haviam criado e instalado seus Juizados, tomei conhecimento da existência de verbas disponíveis no Ministério da Justiça, para a estruturação dos Juizados de Violência Doméstica, as quais seriam devolvidas ao governo, naqueles dias, à falta de apresentação de projetos, pelos Estados. De imediato, fiz contato com a Presidente do Tribunal, expondo-lhe acerca do prazo que dispúnhamos para apresentação de um projeto de estruturação para a Vara, sob pena de perdermos a verba. Além do prazo exíguo, tínhamos contra nós um feriado e o final de semana que o seguia.


Ela de imediato se predispôs disponibilizar a equipe de planejamento do Tribunal para trabalhar no feriado e final de semana para que pudéssemos apresentar o projeto. E assim foi feito. Retornando na madrugada, ao amanhecer do dia já estava com a equipe do Tribunal na Vara e, no último dia de prazo, numa segunda feira, o Tribunal de Justiça do Acre apresentava ao Ministério da Justiça, via Secretaria de Reforma do Judiciário, seu primeiro projeto para a estruturação da Vara, resultando no Convênio nº 84/2008, o qual tinha por fim Estruturar a Vara de Violência Doméstica e Familiar da Comarca de Rio Branco/AC., mediante a aquisição de equipamentos e a contratação de serviços.


Aprovado o Projeto e o Plano de ação, e uma vez firmado o convenio, cuja execução deveria ocorrer no período de dezembro/2008 a setembro/2010, foram disponibilizados R$306.000,00 (trezentos e seis mil reais) para a Unidade, de cujo montante foram adquiridos 01 (um) veículo e 02 (duas) motos para serem utilizados nas ocorrências e cumprimento de mandados; 01(uma) brinquedoteca para uso das crianças, filhas das vítimas que não tinham com quem deixa-las enquanto eram atendidas pela equipe multidisciplinar ou participavam das audiências; 04 notebooks e 01 datashow e confeccionadas 2.000 cartilhas e 600 folders, além da contratação dos membros da equipe multidisciplinar e estagiários.


O projeto também incluía a divulgação e conscientização da lei. Para tanto, fizemos uma campanha, dividida em 4 (quatro) etapas: a primeira, consistiu em palestras para a comunidade nas escolas dos bairros com maior índice de violência; a segunda, se constituiu em um concurso de frases e redações; a terceira, compreendeu a premiação dos classificados, com divulgação em outdoors em alguns pontos da cidade; a quarta, encerrou com uma cicleata com a participação dos alunos das escolas selecionadas, servidores e magistrados.


Para a primeira fase, passamos (eu e os servidores) a mapear os bairros com maior índice de violência, tomando por base o endereço das vítimas e agressores constantes dos processos na Unidade. Feito o mapeamento, selecionamos as escolas nos bairros que concentravam o maior número de alunos. Feito isto, fiz reuniões com os diretores para expor as etapas da campanha, bem como para contar com o apoio dos mesmos para divulgação e convite à comunidade. Estabelecido o calendário dos dias e horários em que as palestras deveriam acontecer (das 19 às 22 horas, já que era o único horário disponível), eu me deslocava, após o expediente na Vara, no meu carro, sozinha ou, em algumas vezes, com o meu assessor, para proferir as palestras, as quais eram ministradas nas quadras de esporte, de regra para uma clientela de 100 a 130 pessoas, entre alunos e pessoas da comunidade, em que eu me utilizava de um microfone e caixa de som emprestados do Projeto Cidadão. Após as palestras eram distribuídas cartilhas e fôlderes e passadas as informações para o concurso da fase seguinte.


Na etapa seguinte, contando com a colaboração dos professores, realizamos, com os alunos das escolas selecionadas, o concurso de frase, para os alunos das quatro primeiras séries, e o de redação, para as últimas séries do ensino fundamental, cuja seleção, das três melhores frases e das três melhores redações, ficou a cargo dos professores, com o encaminhamento do resultado à Vara. Selecionadas as três melhores frases e redações de cada escola, busquei apoio de um dos membros da Academia Acreana de Letras, professora Robélia, para avaliar e selecionar as três finalistas, sendo as frases divulgadas em outdoors, com o nome do aluno e escola. Para o patrocínio dos outdoors e premiação dos alunos, busquei doações no comércio e empresas locais, cujas visitas eram realizadas nos intervalos do almoço.


A solenidade de premiação aconteceu no Palácio da Justiça e contou com a participação dos alunos, professores e diretores de todas as escolas, de cujo evento o Des. Samoel, então vice-presidente do Tribunal de justiça, se fez presente.


O encerramento da campanha ocorreu com uma cicleata, da qual participaram alunos, professores, servidores e magistrados, sendo prestigiada pelo Presidente do Tribunal de Justiça à época, Adair Longuini, que acompanhou a cicleata. Em todas as etapas da campanha pude contar com a colaboração incansável da servidora Rosângela Raulino, à época lotada na Secretaria de Programas Sociais do Tribunal de Justiça, a qual, além de ajudar na organização e na arrecadação das doações dos prémios, ainda fazia o registro fotográfico dos eventos.


Uma vez adquirida a brinquedoteca, saímos em busca de equipa-la com brinquedos e livros infantis. Realizamos, então, uma campanha, no âmbito do Poder Judiciário, para aquisição de brinquedos e livros infantis, a qual contou com a colaboração do pessoal do cerimonial do Tribunal, obtendo-se excelente resultado. Deteriorados os brinquedos e livros, fizemos uma segunda campanha, com o mesmo fim, obtendo o mesmo êxito.


Além da titularidade da Vara, passei a cumular também a Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Portaria 1.385/2011) e, nessa condição, conciliando a atividade judicial com a atividade administrativa, buscava, a cada dia, criar Políticas Públicas de conscientização e combate à violência. Nessa perspectiva, em parceria com a Secretaria de Políticas para as Mulheres, tendo à frente, à época, a Secretária Concita Maia, criamos o sistema de rede de atendimento à mulher vítima de violência (inexistente, até então, no âmbito do Estado do Acre).


Em razão do significativo número de inquéritos represados na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher – DEAM, o que ocasionava recorrentes prescrições, conseguimos, junto ao Corregedor Geral do Ministério Público, que disponibilizasse um Promotor para fazer um mutirão na DEAM na análise dos inquéritos que se encontravam sem o devido andamento. Dr. Luiz Henrique C. Rolim, nomeado para a realização do trabalho, deu vazão a grande parte do acervo represado, com o oferecimento de denúncias, postulação de arquivamento ou extinção da punibilidade pela prescrição.


A partir de então, e com o fim agilizar e racionalizar a tramitação dos inquéritos, bem como diminuir o volume da demanda cartorária, com o apoio do então Corregedor Geral de Justiça, Des. Arquilau Melo, foi firmado um Provimento Conjunto (Nº 001/2012), entre as Corregedorias do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Civil, para que os inquéritos tramitassem diretamente entre a Delegacia e o Ministério Público. Na busca pela inserção no mercado de trabalho dos autores de violência que se encontravam desempregados, a Unidade criou um cadastro de empresas que admitiam esses agressores, as quais enviavam relatório mensal para a Vara. Além disso, fizemos parceria com instituições religiosas e entidades não governamentais para onde a Equipe Multidisciplinar fazia o encaminhamento dos dependentes  de álcool e outras drogas, podendo mencionar, dentre elas, a JOCUM e APADEC, as quais também enviavam relatórios mensal à Unidade. Desenvolvíamos também, dentro da Unidade, o Projeto que se chamou de A OUTRA VÍTIMA, em que os autores de violência reincidentes eram selecionados para participar de um ciclo de reuniões e palestras, consistentes em 6 (seis) encontros, uma vez por semana, no horário de 11h. às 13h., com a participação da magistrada, equipe multidisciplinar e outros profissionais convidados para abordar assuntos diversos, dentre eles, abordagens acerca da lei, as causas e os ciclos da violência, direitos e deveres dos cônjuges, respeito mútuo, responsabilidades na criação e formação dos filhos, saúde etc.


Ainda no âmbito de Política Pública, e em cumprimento às ações propostas no projeto, ministramos um curso de mediação familiar para voluntários aposentados (professoras, defensoras públicas, pedagogas, procuradoras do Estado, membros de instituições religiosas e outros membros da comunidade), visando a formação de uma equipe de aconselhamento e orientação para auxiliar no trabalho da Vara, em particular com os casais que viviam um ciclo de violência do qual não conseguiam se libertar (casos, por exemplo, em que a vítima tinha mais de 20 processos de medidas protetivas concedidas em face do mesmo agressor).


Dentre as voluntárias, registro: Dione Daher, Maria Amélia P. da Silva, Maria Inês das Graças F. Gouveia, Maria Miriam Bezerra N. de Queiroz, Marilene Brasileiro Mamed, Marildes do Couto Pinho, Maurinete de O. Abomorad, Nabiha Bestene Koury, Rebeca Baston R. Belon e Rosileide Leal do Vale, cuja certificação ocorreu quando da solenidade de mudança das Instalações da Vara do 2º Distrito (Rua 24 de janeiro) para a rua Benjamin Constant (ao lado da Radiodifusora Acreana).


Não obstante a extensa pauta de audiências, em razão da vertiginosa demanda, toda última semana do mês fazíamos mutirão de audiência para dar vazão ao acervo. Nesses períodos, nos cotizávamos e fazíamos as refeições na própria Vara, cuja comida era feita lá mesmo, por servidores e membros da equipe multidisciplinar que, registre-se, cozinhavam muito bem. Comiam todos: magistrada, promotores, defensores, servidores, equipe multidisciplinar, os membros da segurança e, até, algumas vítimas quando a comida era em abundância. Não resta dúvida que era cansativo, mas muito prazeroso. O trabalho transformava-se num ambiente de confraternização.


No âmbito nacional, além das Jornadas da Maria da Penha, tínhamos os encontros do FONAVID – Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica (criado durante a 3ª Jornada, em 31/03/2009), com discussões acaloradas. Nesses encontros, conheci homens e mulheres aguerridos, sonhadores, dispostos a se doar em prol da causa que abraçaram, podendo citar, dentre tantos/as, Dra. Adriana Mello, do Rio de Janeiro; Dra. Luciane Bortoleto, do Paraná; Dr. Álvaro Kalix Ferro, de Rondônia; Dr. Renato Vasconcelos, do Rio Grande do Norte, Dr. Antonio, de Goiás, Dra. Ana Cristina S. Mendes, de Mato Grosso, Dra. Madgéli Machado, de Rio Grande do Sul. Nesses encontros, o Acre tinha participação ativa nos debates e compartilhava seus projetos, suas realizações no âmbito da Vara. O projeto A OUTRA VÍTIMA e o concurso de redação e frases foram, inclusive, realizados por outros estados, apenas mudando o formato e o nome.


No decorrer desses 15 (quinze) anos muitos dos soldados da batalha no combate à violência doméstica e familiar foram se unindo a nós, outros foram sendo substituídos, seja por remoção ou promoção. No âmbito do Estado do Acre, por exemplo, pedi remoção para a 5ª Vara Cível (Portaria nº 2.331/2012), saindo da Unidade em dezembro de 2012, quando assumiu o meu lugar uma outra guerreira, Dra Shirlei (Portaria nº 761/2013), encontrando-se à frente da Vara até os dias de hoje.


Na coordenação do COMSIV – Coordenadoria Estadual de Proteção à Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar, também já passaram duas guerreiras, Desa. Regina e Desa Waldirene, estando no comando, desde fevereiro de 2017 (Portarias 453/2017, 378/2019 e 595/2021), uma outra combatente dessa causa, Des. Eva Evangelista, que tem feito um brilhante e incansável trabalho à frente da coordenação, voltando-se, principalmente, para as ações de conscientização e prevenção, com destaque às vítimas surdas/mudas e indígenas, às mulheres ribeirinhas e àquelas que se encontram no sistema carcerário. Por certo seus feitos
ficarão registrados nos anais da história.


Não poderia deixar de registrar também o trabalho que vem sendo desenvolvido na Vara de Proteção à Mulher e Execuções Penais da Comarca de Cruzeiro do Sul, criada em fevereiro de 2016 (Res. 2014/2016), conduzida, inicialmente, pelo Juiz Marlon M. Machado (Portaria 2205/2017) e, após, pela Juíza Carolina Àlvares Bragança, que se encontra à frente dessa batalha desde agosto de 2018 (Portaria 2034/2018), os quais também enfrentaram, e continuam enfrentado, muitos desafios. Todos/as esses/as atores/as têm muito a contar desse novo momento, por certo também permeados de percalços. Deixemos a eles/as os registros dessa fase.


II – O CENÁRIO DA VIOLENCIA CONTRA A MULHER DECORRIDOS QUINZE ANOS. OUTROS CAMINHOS A PERCORRER.


As estatísticas revelam que, passados 15 (quinze) anos da edição da lei 11.340/2006, classificação em 2012 pela ONU como a terceira melhor lei do mundo, os índices de violência continuam alarmantes. Uma pesquisa do Datafolha aponta que, após a promulgação da lei 13.104/2015, os crimes de feminicídio, que em 2016 registravam 929, em 2019 saltaram para 1.326. Segundo dados do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, somente no 1º semestre de 2020, época que coincidiu com início da pandemia, foram mortas no Brasil, em razão de gênero, 648 mulheres, o que representa um aumento de 1,9% em relação ao mesmo período do ano anterior (IBDFAM, 2020). Uma outra pesquisa do Datafolha, encomendada pelo FBSP – Fórum Brasileiro de Segurança Pública, registra que, na pandemia, 01 em cada 04 mulheres acima de 16 anos, no Brasil, foi vítima de algum tipo de violência, mudando apenas o local de predominância da ocorrência (que passou a ser em casa) e a figura do agressor, que deixou de ser somente o esposo/companheiro/namorado para ser o pai, a mãe, o irmão, o padrasto, a madrasta e, os filhos e enteados, com agressões praticadas às mulheres (mães e madrastas) acima de 50 anos.


No gráfico apresentado no Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2020 (Tabela 2: feminicídio), tendo por base um levantamento feito em 12 Unidades da Federação, o Acre foi apontado com um aumento de feminicídio de 300%, passando de 01, em 2019, para 04 vítimas no período de marco a abril de 2020. A causa que se tem apresentado para justificar o aumento dos índices de violência contra às mulheres no país, incluindo os casos de feminicídio, durante a pandemia, é a dificuldade de acesso às redes de atendimento, o que deixou as mulheres vítimas de violência ainda mais vulneráveis. Não resta dúvida que esse fato também contribuiu, mas não há como admitir apenas ele como o fator da violência nesse período, até porque as pesquisas mostram um aumento significativo de divórcios no mesmo período e nem por isso a causa dos casamentos desfeitos foi a violência contra a mulher. Além disso, ao longo desses anos de existência da lei a curva da violência sempre foi em ascensão jamais em declive.


A Vara da capital registra, hoje, 05/08/2021, um acervo (desde a instalação) de 6.494 processos em curso e 123.940 processos arquivados e baixados (dados fornecidos pela Unidade). Esses dados só revelam o nosso grande equívoco em achar que as leis resolvem todos os problemas. Não obstante as inúmeras mudanças legislativas ocorridas ao longo desses 15 anos, dentre as quais se menciona a lei do feminicídio já referida acima (Lei 13.104/2015), a qual alterou o Código Penal, incluindo o feminicídio como qualificadora do crime de homicídio, e a Lei dos Crimes Hediondos, inserindo o feminicídio dentre os crimes dessa natureza, e agora, mais recentemente, a Lei 14.188, sancionada no dia 01 de julho do ano em curso, a qual inseriu no Código Penal o crime de violência psicológica contra a mulher, caracterizado como o que causa dano emocional, bem como institucionalizou o Sinal Vermelho como forma de combate à violência (no âmbito do estado foi institucionalizado pela Lei Estadual 3.736, de 09 de julho de 2021), além da implementação de outros mecanismos de combate e enfrentamento à violência,  como a Patrulha Maria da Penha, o Botão da Vida, Botão do Pânico, dentre tantos outros criados pelo Brasil afora, ainda há um longo caminho a percorrer, com foco, principalmente, como já disse no artigo anterior, na educação, conscientização e prevenção.


A repressão, com privação à liberdade ou afastamento do agressor, tem demonstrado constituir-se em instrumento não eficaz no combate à violência doméstica e familiar. Se fizermos um apanhado bibliográfico, seja em publicações acadêmicas, bibliotecas eletrônicas ou outros instrumentos de pesquisa, veremos que a questão da violência contra a mulher nunca deixou de ter a atenção das autoridades no âmbito dos três poderes. Muita coisa foi feita ao longo desses 15 anos de edição da lei, porém, pouco resultado se alcançou, como revelam as estatísticas acima. Diante desse contexto, é preciso repensar o agir, a forma de enfrentar essa mazela social que, diferente da COVID 19, mata não apenas o físico, mata a alma, mata os sonhos, devasta famílias e, além de não ter vacina para combatê-la, traz em seu “DNA” uma questão cultural que precisa ser tratada, transformada.


Embora com maior predominância nas classes sociais de menor poder aquisitivo e envolvendo menores vulneráveis, mulheres indígenas, negras e separadas, a violência contra a mulher atinge todas as classes e segmentos da sociedade, a exemplo do que ocorreu com a Juíza do Rio de Janeiro, Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, brutalmente assassinada pelo ex- marido, na frente das filhas, na véspera do Natal de 2020, e o caso de Pâmella Holanda, mulher do DJ Ivis (Iverson Araújo), espancada na frente da mãe e até da governanta, mostrado pelo Fantástico em 18/07/2021.


A prevenção e o combate à violência contra a mulher é dever de todos nós (art.3º, §2º, da lei 11.340/06). A sociedade civil precisa se organizar e se envolver com essa causa, se tabus, sem preconceitos. O assunto deve ser tratado nas escolas, já a partir das primeiras séries; deve ser levado às igrejas, associações de bairro, sindicatos, comitês…. Enfim, a todos os seguimentos. É preciso, porém, que os poderes, as entidades dialoguem, trabalhem em parceria, em rede como diz a lei (art. 8º da LMP). Não há como tratar da questão de forma isolada, cada um fazendo ao seu jeito e ao seu modo.


A magistratura tem papel preponderante nesse cenário. Se as medidas judiciais não foram e não estão sendo suficientes para mudar os fatos, redefinir as estatísticas, o magistrado precisa repensar a forma de tratar a questão, precisa sair de seu gabinete, discutir o problema com outros segmentos da sociedade, ouvir as mulheres (e até os agressores), tratar com as partes fora do ato judicial, sem que isso implique em parcialidade. Além de proativo, participativo nas ações de prevenção e combate à violência, seus atos judiciais devem nortearse nos princípios da acessibilidade, justiciabilidade e celeridade. É necessário, entretanto, que esse magistrado, além de dispor de condições materiais internas, possa também dispor da pronta prestação dos outros órgãos e instituições que integram o sistema de justiça, sob pena de se continuar apenas contabilizando estatísticas.


Como dito alhures, saí da Vara de Violência Doméstica e Familiar em dezembro de 2012 e, passados quase nove anos, salvo algumas vezes em que fui convidada a participar de mutirões na Unidade, além do convite, tão logo deixei a Vara, para proferir palestras em algumas escolas acerca do tema, não mais me envolvi com a questão e, ao fazer uma leitura acurada acerca da matéria para a abordagem desses registros, confesso, senti-me responsável ao perceber que muito foi feito, mas pouco foi mudado e que para isso, após minha remoção da Unidade, em nada contribui.


Se cada um de nós, cidadão/cidadã comum, tiver consciência do dever de contribuir para a exterminação desse mal que desfaz lares, relacionamentos, enluta famílias… e da necessidade de se aliar aos homens e mulheres que estão na linha de frente no combate a esta causa, a luta contra a violência a mulher não será em vão; caso contrário, nada terá valido a pena.


Por fim, não poderia encerrar esses relatos sem registrar aqui os nomes de todos aqueles que passaram pela Unidade, desde a fase inicial até os dias em que lá permaneci, os quais muito fizeram, no âmbito de suas atribuições, para estancar ou mesmo amenizar o sofrimento das vítimas de violência: Dra. Marcela Cristina Ozório (Promotora titular da Vara); Dra. Wânia Lindsay de Freitas Dias (Defensora das vítimas); Dra. Thais Araújo de Sousa Oliveira (Defensora dos réus); equipe multidisciplinar e estagiários (contratados através do convênio):  Adriana Voltolini Munoz, Angelita Martins Rodrigues, Viviane Gislaine Aníbal, Ana Alice Portela de Freitas, Francisca Eliane Frota, Laura Maria Aragão, Marilídia Moreno Costa Lima, Priscila Maia de Souza, Bruno Camelo Derze, Catherine Lamar de Azevedo, Tatyana Cristina Cardoso Xavier Vanessa Alves Figueiredo, Daiana da Silva Sampaio Araújo, Karen Cristina de Oliveira; servidores e estagiários do Poder Judiciário ou cedidos de outros órgãos: Ana Regina, Francinete, Patrícia S. de Oliveira, Diane M. de Oliveira, Maria de Jesus L. Felipe, Evany de A. Vieira, Gerlane G. da Silva, Adimaura Souza da Cruz, Alex S. de Souza, Aderlany M. Rezende Hassem, Agatha P. da Silva, Alynne do N. Teixeira, André Henrique de O. Silva, Carolinne Beiruth Viana, Dayse M. A. Ramalho, Davi P. Alencar, Francisca de M. Mendonça, Grazielle O. Wutzke, Kátia D. de Souza, Laís Emanuela de S. Martins, Laura Rodrigues A. das Neves, Magdiel C. Mendes; Marco Aurélio T. Leal, Nadya Cristina da S. Souza, Osvaldo Angelo da S. Filho, Renné M. de Souza, Vanessa L. Machado, Victor da S. Oliveira, Oficiais de Justiça: Dionízio, Vanderlei, Carlos Venícius; motorista: Anderson Collyer Neves.


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