A fisiculturista Andrea Siqueira Valle, ex-cunhada do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), contou, em gravações inéditas obtidas pela coluna, que Bolsonaro demitiu um irmão dela chamado André Siqueira Valle porque ele se recusou a entregar a maior parte do salário de assessor do então deputado federal.
A declaração da ex-cunhada é o primeiro indício de envolvimento direto de Bolsonaro em um esquema ilegal de entrega de salários, conhecido como rachadinha, dentro de seu próprio gabinete no período em que foi deputado federal. Ele ocupou o mandato de parlamentar na Câmara dos Deputados entre os anos de 1991 e 2018.
Andrea e André são irmãos de Ana Cristina Siqueira Valle, segunda mulher do presidente. Em gravações inéditas, Andrea contou que Bolsonaro exigia grande parte dos salários dos parentes da companheira que foram nomeados nos gabinetes da família Bolsonaro.
Segundo Andrea, Bolsonaro chegou a retirar um familiar dela do esquema por não entregar o valor combinado, quase 90% do salário. Ela foi a primeira dos 18 parentes da segunda mulher do presidente que foram nomeados em um dos três gabinetes da família Bolsonaro (Jair, Carlos e Flávio) no período de 1998 a 2018. Os áudios podem ser ouvidos no vídeo a seguir.
Advogado nega ilegalidades
Ao ser informado sobre as gravações de Andrea Siqueira Valle, o advogado Frederick Wassef, que representa o presidente, negou ilegalidades e disse que existe uma antecipação da campanha eleitoral de 2022.
Wassef afirmou à coluna que os fatos narrados por Andrea “são narrativas de fatos inverídicos, inexistentes, jamais existiu qualquer esquema de rachadinha no gabinete do deputado Jair Bolsonaro ou de qualquer de seus filhos”. Ele disse que se trata de uma “gravação clandestina à qual não tenho acesso, não conheço o conteúdo e não foi feita perícia”.
Andrea Siqueira Valle fez as revelações a pelo menos duas pessoas ouvidas pela coluna e em diferentes ocasiões entre 2018 e 2019. Um dos interlocutores que ouviu Andrea entregou, sob a condição de ficar em anonimato, gravações originais de Andrea revelando o esquema. A coluna confirmou a autenticidade dos áudios e disponibiliza trechos para proteger o sigilo da fonte.
O material exclusivo está disponível no podcast UOL Investiga: “A vida secreta de Jair”, que estreia amanhã no UOL e em todas as plataformas de podcast.
Em um trecho, a fisiculturista contou que o produtor de eventos André Siqueira Valle, um dos irmãos de Ana Cristina, foi exonerado do gabinete de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados, em 2007, por não devolver o valor combinado.
“O André deu muito problema porque ele nunca devolveu o dinheiro certo que tinha que ser devolvido, entendeu? Tinha que devolver R$ 6.000, ele devolvia R$ 2.000, R$ 3.000. Foi um tempão assim até que o Jair pegou e falou: ‘Chega. Pode tirar ele porque ele nunca me devolve o dinheiro certo’. Não sei o que deu pra ele”, disse Andrea.
O advogado Magnum Cardoso que atua na defesa de Ana Cristina Valle e sua família disse por nota que os clientes decidiram que não iriam se pronunciar.
Procurada para falar das gravações, Andrea leu as mensagens da coluna e depois bloqueou os contatos no telefone e nas redes sociais.
Confissões em pelo menos duas ocasiões
Andrea admitiu o esquema de devolução de salários tanto do irmão como dela mais de uma vez entre 2018 e 2019. Uma das ocasiões em que ela falou do assunto foi justamente durante a festa de casamento do próprio André. A celebração ocorreu na véspera do primeiro turno da última eleição presidencial, em 6 de outubro de 2018.
Nesse dia, Andrea disse que estava preocupada com seu futuro pois recebia uma mesada como funcionária fantasma no gabinete de Flávio Bolsonaro e não sabia como ficaria a situação depois da eleição. Ela havia sido exonerada em 16 de agosto de 2018, ou seja, um mês antes.
Em outra ocasião, também entre 2018 e 2019, Andrea então diz que tentou falar sobre a situação com a irmã, Ana Cristina, e com um tio, o coronel do Exército Guilherme dos Santos Hudson, ex-colega de Bolsonaro na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras). A fisiculturista afirmou ainda que chegou a fazer contato com o gabinete de Flávio Bolsonaro, mas ninguém quis atendê-la.
“Porque assim, eu procurei a Cristina, o tio, liguei para o gabinete do Flávio para saber o que tinha que fazer, fiquei com medo de complicar as coisas para eles, ainda pensei neles”, afirmou Andrea, nas gravações. Em seguida, confessou: “Na hora que eu estava aí fornecendo também e ele estava me ajudando porque eu ficava com mil e pouco e ele ficava com sete mil reais, então assim, certo ou errado agora já foi, não tem jeito de voltar atrás”.
André é o irmão caçula de Ana Cristina e Andrea. O produtor de eventos constou como assessor do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Foram dois períodos. O primeiro entre agosto de 2001 e fevereiro de 2005. Um ano depois, em fevereiro de 2006, ele foi novamente nomeado no gabinete do “02” e lá ficou até novembro do mesmo ano.
No dia 10 de novembro de 2006, André passou a integrar a lista de funcionários do gabinete de Jair Bolsonaro na Câmara de Deputados. A exoneração do gabinete de Carlos ocorreu dois dias antes, em 8 de novembro de 2006. O salário bruto dele na Câmara dos Deputados era de R$ 6.010,78. Ele ficou lá até outubro de 2007. Apenas nos últimos 15 dias, ele teve uma redução desse valor e recebeu a metade. Na época da nomeação, ele vivia no Rio de Janeiro e chegou a morar com Bolsonaro e Ana Cristina. Hoje ele vive em Resende, no sul do estado do Rio de Janeiro.
Já Andrea foi nomeada assessora da família Bolsonaro durante vinte anos. Neste período, a reportagem apurou que a fisiculturista frequentava academias três vezes por dia e era conhecida por fazer bicos com faxina.
Andrea constou como assessora de Jair Bolsonaro de 30 de setembro de 1998 a 7 de novembro de 2006. Neste período, ela nunca morou em Brasília. As datas indicam que Andrea e o irmão André trocaram de lugar nos gabinetes de Carlos e de Jair Bolsonaro.
A ex-cunhada do presidente foi nomeada na Câmara Municipal do Rio em 8 de novembro de 2006. Lá permaneceu no gabinete de Carlos até setembro de 2008. Depois disso, foi nomeada no gabinete de Flávio Bolsonaro, onde permaneceu até agosto de 2018. No último ano em que esteve nomeada, o salário bruto da Andrea era de R$ 7.326,44, fora os benefícios recebidos.
Andrea é um dos alvos da investigação no caso do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ). Ela teve os sigilos bancário e fiscal quebrados a pedido do MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro). Segundo o MP, ela recebeu líquido entre 2008 e 2018, período de nomeação na Alerj, um total de R$ 674,9 mil. Desse total, ela sacou no período 98%, o que equivale a R$ 663,6 mil.
No fim do ano passado, o MP-RJ denunciou Flávio e Queiroz para o TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
A coluna apurou que a parte da investigação que envolve esse núcleo de familiares de Ana Cristina está aguardando o resultado do julgamento do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o foro de julgamento do senador Flávio. O STJ (Superior Tribunal de Justiça) anulou, em fevereiro de 2021, a decisão que autorizou as quebras de sigilo no caso do senador Flávio. O MPF e o MP-RJ recorrem dessa decisão.
Recrutamento de familiares
Ana Cristina e Bolsonaro passaram a viver juntos em 1998, pouco depois do nascimento do filho do casal, Jair Renan Bolsonaro. Um pouco depois disso os parentes dela passaram a ser listados nos gabinetes. Carlos Bolsonaro se tornou vereador em 2001 e Flávio assumiu seu primeiro mandato como deputado estadual em 2003.
A coluna apurou que a ex-mulher do presidente perguntou em uma reunião de família, no início do casamento dela com Bolsonaro, se os familiares gostariam de ser nomeados no gabinete dele. No relato, Ana Cristina teria dito que tudo que ela precisava era do CPF de quem aceitasse. Não seria necessário trabalhar diariamente, apenas distribuir panfletos em época de campanha eleitoral. E o mais importante: o combinado seria devolver cerca de 90% do valor do salário todos os meses.
Mais tarde com a eleição de Carlos e Flávio os cargos em outros gabinetes também passaram a ser usados.
Ao longo das investigações sobre rachadinha no caso do senador Flávio, o MP-RJ verificou que o núcleo de 10 familiares de Ana Cristina Valle, que constaram como assessores de Flávio, sacou em dinheiro vivo, em média, 83% do salário. O montante chegou a R$ 4 milhões no período. Em todas as vezes que foi procurada sobre o assunto, Ana Cristina negou irregularidades.
Em março, o UOL revelou em uma série de reportagens que Ana Cristina tinha ficado com todo o saldo, R$ 54 mil, de uma conta que Andrea tinha para receber o salário na Câmara dos Deputados. Isso ocorreu algum tempo depois da exoneração, em 2008.
A ex-mulher do presidente alegou desconhecer o registro. O advogado Magnum Cardoso afirmou que “a defesa não irá se manifestar tendo em vista que o procedimento tramita sob sigilo.” Ele disse ainda “repudiar veemente o vazamento dessas informações, algo que vem se tornando rotina em se tratando desse procedimento.”
As reportagens da série mostraram ainda que quatro funcionários de Bolsonaro retiraram 72% de seus salários em dinheiro vivo quando constavam como seus assessores na Câmara dos Deputados. Eles receberam R$ 764 mil líquidos, entre salários e benefícios, e sacaram um total de R$ 551 mil em espécie.
A suspeita sobre funcionários fantasmas no gabinete de Jair Bolsonaro surgiu desde o início de 2018. Na época, o jornal Folha de S. Paulo fez reportagens mostrando que Walderice Santos da Conceição, a Wal do Açaí, não atuava como assessora parlamentar do então deputado Jair Bolsonaro.
Além do caso de Flávio, O MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) investiga André e Andrea junto com Ana Cristina e Carlos Bolsonaro após reportagem da colunista Juliana Dal Piva e da repórter Juliana Castro, publicada na revista Época em junho de 2019, revelar que familiares da segunda mulher do presidente eram funcionários fantasmas no gabinete do “02”. Ana Cristina foi chefe de gabinete entre 2001 e 2008, período da nomeação de André.
Presidente pode ser investigado por atos anteriores ao mandato
De acordo com o artigo 86 da Constituição Federal, o “presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”.
No entanto, segundo a interpretação de alguns ex-procuradores-gerais da República, Bolsonaro pode ser investigado. Isso ocorreu, por exemplo, com o ex-presidente Michel Temer (MDB).
O ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles avaliou à coluna que o atual procurador-geral da República, Augusto Aras, pode investigar o presidente Jair Bolsonaro pelos indícios apontados por reportagens do UOL sobre a existência da prática de rachadinha no gabinete dele quando era deputado federal.
A opinião de Fonteles é compartilhada por outro ex-procurador-geral que pediu anonimato à coluna. Para Fonteles, responsabilizar “significa imputar uma conduta criminosa a alguém. A denúncia é que faz isso. Na investigação, você está apurando”. Para ele, é possível instaurar um procedimento de investigação sobre atos anteriores ao mandato.
Em 2017, o ministro do STF Edson Fachin autorizou uma investigação contra Temer, por exemplo. Executivos da Odebrecht afirmaram em delação premiada que repassaram R$ 10 milhões ao então PMDB para auxiliar nas eleições de 2014.
Segundo os delatores, o acordo teria sido selado em um encontro no Palácio do Jaburu, residência oficial do vice. Temer só assumiu a Presidência em 2016, após o impeachment de Dilma Rousseff (PT).