Além do policial Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), um coronel da reserva do Exército atuou no recolhimento de salários do antigo gabinete de Flávio na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio). A informação é da fisiculturista Andrea Siqueira Valle, ex-cunhada do presidente Jair Bolsonaro e assessora de Flávio entre 2008 e 2018.
Andrea afirmou, em gravações inéditas obtidas pela coluna, que a maior parte do salário que recebia do gabinete do filho mais velho do presidente era recolhida pelo coronel da reserva do Exército Guilherme dos Santos Hudson. Os áudios podem ser ouvidos no vídeo abaixo.
O militar é tio de Andrea e de Ana Cristina Valle, segunda mulher do presidente. O coronel Hudson foi colega do presidente na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras) nos anos 1970. Ele constou como assessor de Flávio na Alerj, de junho a agosto de 2018. No entanto, pessoas ouvidas pela coluna contam que ele era conhecido há anos como funcionário da família Bolsonaro e sempre transitou junto ao clã.
Nas gravações, Andrea contou que ia com o tio ao banco sacar o dinheiro do salário dela todos os meses. “O tio Hudson também já tirou o corpo fora, porque quem pegava a bolada era ele. Quem me levava e buscava no banco era ele”, afirmou Andrea. A coluna confirmou a autenticidade dos áudios e disponibiliza trechos para proteger o sigilo da fonte.
O material está no podcast UOL Investiga: “A vida secreta de Jair”, que estreia amanhã no UOL e em todas as plataformas de podcast.
Na mesma gravação, Andrea disse que estava sendo silenciada. “Não é pouca coisa que eu sei não. É muita coisa que eu posso ferrar a vida do Flávio, ferrar a vida do Jair, posso ferrar a vida da Cristina. Entendeu? É por isso que eles têm medo aí e manda eu ficar quietinha. Não sei o que, tal. Entendeu? É esse negócio aí”, confidenciou a ex-cunhada do presidente.
Os advogados Luciana Pires, Rodrigo Roca e Juliana Bierrenbach, que representam o senador Flávio Bolsonaro no caso da rachadinha na Alerj, emitiram nota dizendo que “gravações clandestinas, feitas sem autorização da Justiça e nas quais é impossível identificar os interlocutores não é um expediente compatível com democracias saudáveis”.
Os advogados disseram que, por isso, a defesa se sentia “impedida de comentar o conteúdo desse suposto áudio apresentado pela reportagem”. Já sobre Andrea Siqueira Valle, a defesa de Flávio afirma que “ela trabalhou na Alerj e cumpria sua jornada dentro das regras definidas pela Assembleia. Flávio Bolsonaro, nas suas atividades parlamentares, não tinha como função fiscalizar e orientar a forma como a servidora usufruía do seu salário”.
O advogado Magnum Cardoso que atua na defesa de Ana Cristina Valle e sua família, além de Guilherme Hudson, disse por nota que os clientes decidiram que não iriam se pronunciar. Procurada para falar das gravações, Andrea leu as mensagens da coluna e depois bloqueou os contatos no telefone e nas redes sociais.
Por ter sido assessor de Flávio, o coronel Hudson consta do rol de investigados do caso da rachadinha no MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro). Na quebra de sigilo bancária e fiscal do militar foi possível verificar 16 saques que totalizaram R$ 260 mil. A informação foi revelada em reportagem da colunista Juliana Dal Piva e do repórter Pedro Capetti, publicada no jornal O Globo no ano passado.
Os saques foram realizados sempre em espécie e com valores superiores a R$ 10 mil na boca do caixa, em diferentes ocasiões, entre 2009 e 2016. A maioria deles, um total de 11, ocorreu de abril a outubro de 2016. A coluna apurou que o último deles foi no valor de R$ 43 mil, também em dinheiro vivo. Os bancos informaram ao MP que, em alguns casos, possuíam fitas das operações de saque feitas por Hudson.
Esses saques de valores superiores a R$ 10 mil feitos por Hudson ocorreram no mesmo período em que a mulher, um filho e duas noras dele foram assessores de Flávio ou Carlos Bolsonaro. Procurado, Hudson não quis explicar as operações.
Em toda a investigação sobre rachadinha, o alto volume de saques em dinheiro vivo é considerado suspeito por investigadores porque posteriormente os valores são “lavados” em outros negócios como, por exemplo, pagamento de despesas e compra de imóveis.
De 2013 a 2018, os documentos do Imposto de Renda da fisiculturista foram entregues para a Receita Federal informando que o endereço dela era na rua Erick Nordskog, no bairro Jardim Brasília 2, em Resende. Esse, porém, é o local onde fica a casa do coronel Hudson. Andrea nunca viveu ali.
Confidências de Andrea
A fisiculturista Andrea Siqueira Valle fez os relatos que constam das gravações em diferentes ocasiões, entre 2018 e 2019, a pelo menos duas pessoas ouvidas pela coluna. Um dos interlocutores que ouviu Andrea entregou, sob a condição de ficar em anonimato, gravações originais de Andrea revelando o esquema. A coluna confirmou a autenticidade dos áudios e disponibiliza trechos para proteger o sigilo da fonte.
Andrea foi funcionária fantasma da família Bolsonaro por 20 anos. Primeiro, constou como assessora de Jair Bolsonaro, na Câmara dos Deputados, de 30 de setembro de 1998 a 7 de novembro de 2006. Depois, foi nomeada para o gabinete de Carlos Bolsonaro, na Câmara Municipal do Rio, em 8 de novembro de 2006. Lá permaneceu até setembro de 2008.
Depois disso, Andrea ingressou no gabinete de Flávio Bolsonaro na Alerj, onde permaneceu até agosto de 2018. No último ano em que esteve nomeada, o salário bruto de Andrea foi de R$ 7.326,44, fora os benefícios recebidos.
Como ex-assessora, Andrea também é alvo da investigação no caso do senador Flávio Bolsonaro. Ambos tiveram o sigilo bancário e fiscal quebrado a pedido do MP-RJ. Segundo o MP, Andrea recebeu ao longo do período que constou como assessora um total de R$ 674,9 mil, líquidos. Desse total, sacou 98% — R$ 663,6 mil.
Andrea integra ainda um grupo de 10 familiares de Ana Cristina Valle que constaram como assessores de Flávio na Alerj e se tornaram investigados no caso. Esse núcleo sacou mais de R$ 4 milhões no período em que esteve nomeado no gabinete: 83% do que receberam líquido como salários.
No fim do ano passado, o MP-RJ denunciou Flávio e Queiroz para o TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. A coluna apurou que a parte da investigação que envolve esse núcleo está aguardando o julgamento do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o foro de julgamento do caso. O STJ (Superior Tribunal de Justiça) anulou, em fevereiro de 2021, a decisão que autorizou as quebras de sigilo no caso do senador Flávio. O MPF e o MP-RJ recorrem da decisão.
Nos dois meses que trabalhou para Flávio na Alerj, o coronel Hudson recebeu um total de R$ 20,8 mil líquidos, e sacou 74% desse montante. A data de sua exoneração, 15 de agosto de 2018, é a mesma de Andrea. Além do coronel, Ana Maria Hudson, sua mulher, constou por 13 anos como assessora de Flávio.
O coronel Hudson cursou a Academia Militar das Agulhas Negras de 1973 até 1977, mesmo período em que o presidente Jair Bolsonaro estudou no local. Em 2018, Hudson disse em entrevista ao G1 que a turma apelidou o presidente de “Cavalão”, por seu vigor físico.
“O Jair Bolsonaro sempre foi um cadete de destaque. A gente até brincava um pouco com o apelido que a turma de 1977 colocou nele: ‘Cavalão’. Porque realmente tinha um vigor físico absurdo e era um dos atletas de ponta da Aman, principalmente da parte referente ao pentatlo [modalidade esportiva composta por cinco provas]”, afirmou Hudson, depois da eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência da República, em 2018.
O coronel Hudson passou para a reserva do Exército em 1998. Seu último posto foi no Comando da 7ª Região Militar/7ª Divisão de Exército, no Recife (PE).
Quando o coronel Hudson se aposentou, ele e a mulher retornaram para Resende, cidade no sudoeste do estado do Rio de Janeiro. Alguns anos mais tarde, em 2005, Ana Maria Hudson, mulher do coronel e tia de Ana Cristina, foi nomeada no gabinete de Flávio na Alerj. Ela, porém, sempre foi dona de casa.
Em 2008, o então estudante de Direito Guilherme de Siqueira Hudson, filho do coronel, se tornou chefe de gabinete do vereador Carlos Bolsonaro no lugar de Ana Cristina, recém separada de Bolsonaro. O filho do coronel ficou nomeado no cargo -o posto mais alto do gabinete— até o fim de 2017.
Na maior parte do tempo que foi funcionário da Câmara Municipal do Rio, morou na cidade de Resende e nunca teve crachá funcional. Além de Guilherme Hudson, o filho, outras duas noras do coronel Hudson também constaram como assessoras de Carlos, mas viviam em Resende.
Reportagem de Caio Sartori no jornal O Estado de S. Paulo, no ano passado, mostrou que o coronel Hudson comprou, em dinheiro vivo, um terreno de Jair Bolsonaro e Ana Cristina Siqueira Valle, em 2008. Em valores atuais, a compra passa de R$ 70 mil.
Outra reportagem da colunista Juliana Dal Piva e dos repórteres Chico Otavio e João Paulo Saconi, publicada no jornal O Globo, também revelou que o coronel Hudson e seu filho Guilherme, ex-assessor de Carlos, estiveram no gabinete do vereador em outubro de 2019, dias antes de comparecer a um depoimento no MP-RJ para a investigação sobre o gabinete do 02.