Ser obeso ou estar acima do peso nunca foi tão perigoso quanto agora. Uma série de estudos recentes mostra que a obesidade, sozinha, contribui significativamente para o aumento do número de casos graves e mortes de jovens por Covid-19. No Brasil, onde 74% da população, de acordo com o Ministério da Saúde, está acima do peso, o impacto é visível nos leitos de enfermarias e UTIs de Covid-19.
O desastre de saúde pública do encontro da obesidade com a Covid-19 ganha impacto ainda maior após a constatação de que o excesso de peso pode reduzir a eficácia de vacinas e aumentar o risco de síndrome pós-Covid, de acordo com as pesquisas. E quem sobrevive à Covid-19 grave tem elevada a possibilidade de passar a sofrer de obesidade.
— Somos um país acima do peso e vivemos um momento cruel pois a pandemia acentuou o número de pessoas que engordaram e se tornaram sedentárias, num ciclo vicioso, que renova o combustível da Covid-19 — afirma Silvia Sales-Peres, da Universidade de São Paulo (USP), coordenadora de estudos sobre o impacto da obesidade sobre a Covid-19, que alerta: — Independentemente da idade, a obesidade traz maior risco e seus efeitos nocivos são mais notáveis nos jovens. A Covid-19 escancarou nossa trágica epidemia de obesidade.
Um dos maiores estudos internacionais sobre obesidade e Covid-19, publicado essa semana na revista Lancet Diabetes & Endocrinology, revelou que o excesso de peso, mesmo que pouco acentuado, é um fator de risco de agravamento e morte por Covid-19 maior para os jovens na faixa dos 20 aos 39 anos do que para os idosos. O estudo analisou dados de 6,9 milhões de pessoas com Covid-19 na Inglaterra e mostrou que os riscos aumentam proporcionalmente ao excesso de peso.
No Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, em Acari, Zona Norte do Rio de Janeiro, onde fica a maior UTI de Covid-19 do Brasil, houve um aumento de 22% das internações de pacientes com obesidade nos últimos 60 dias. O Gazolla também registrou um crescimento de 28% da mortalidade dos pacientes obesos, no mesmo período.
Na última quarta-feira, dos 393 internados, 96 eram obesos de graus II e III, mais severos. O hospital não tabula o grau I e o sobrepeso, mas o diretor, Roberto Rangel, diz que a obesidade e o sobrepeso sozinhos são comorbidades alarmantes, principalmente entre os jovens.
Segundo a mais recente pesquisa Vigitel, de 2020, 55% da população brasileira têm sobrepeso e outros 19,2% sofrem de obesidade. São obesas as pessoas com índice de massa corporal (IMC) acima de 30 — número calculado a partir da relação entre a altura e o peso do indivíduo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica como sobrepeso IMCs superiores a 25.
À medida que a Covid-19 se deslocou dos mais idosos para os mais jovens, o impacto da obesidade ficou mais evidente, destaca a pneumologista e pesquisadora da Fiocruz Margareth Dalcolmo.
Muitas vezes, pessoas obesas são também cardiopatas e diabéticas. E isso é mais frequente nos mais idosos. Mas agora, salienta Sales-Peres, há jovens com quadros severos de Covid-19 sem nenhum outro fator de risco além da obesidade.
— Fica nítido que a obesidade sozinha traz um risco imenso para a Covid-19 e tragicamente as pessoas estão ficando cada vez mais gordas. Precisamos de campanhas e políticas de saúde pública contra a obesidade com urgência maior do que nunca — diz a cientista.
Única comorbidade que aumentou no último ano
Uma análise de Sales-Peres em São Paulo mostrou que a obesidade foi a única das comorbidades que aumentou em 2021 em relação a 2020. O percentual de óbitos no estado associados a doenças cardiovasculares se manteve estável: 59,9% em 2020 contra 59,4% em 2021. O mesmo vale para diabetes: 43,3% em 2020 e 43% em 2021. Já a obesidade saltou de 6,1% em 2020 para 11,4%, praticamente dobrando em 2021. A soma excede 100% porque pessoas podem ter mais de uma comorbidade.
O risco de obesos precisarem de internação é de 113%, mostrou o estudo publicado no periódico científico Obesity Reviews. Liderado pelo pesquisador do Banco Mundial Barry Popkin, o estudo indicou que os obesos correm um risco de morte 48% maior.
Inflamação do obeso agrava quadros
O excesso de gordura é fator de agravamento da Covid-19 por uma série de fatores. O primeiro é que ele gera inflamação. Todo obeso é inflamado e, por isso, mais suscetível à inflamação provocada pela Covid-19. Os obesos também apresentam uma maior tendência a apresentar trombos, outra das graves consequências da Covid-19.
Somado a isso, o excesso de peso reduz a eficiência do sistema imunológico e as defesas contra o vírus. Além disso, há fortes indícios de que o coronavírus usa o tecido gorduroso como um “reservatório”, para se esconder do ataque do organismo. No caso dos obesos mais severos, há ainda uma maior dificuldade para respirar porque a gordura no abdômen comprime o diafragma.
As deficiências imunológicas trazidas pelo excesso de peso também se manifestam na eficiência das vacinas. Uma pesquisa italiana, divulgada em fevereiro, revelou que obesos vacinados com o imunizante da Pfizer produzem a metade dos anticorpos que pessoas de peso normal.
Sales-Peres considera ser provável que o mesmo possa acontecer com outras vacinas pois o sistema imunológico é afetado pela obesidade, e a resposta dos linfócitos B e T é menos eficaz em obesos. — Talvez pessoas obesas tenham que tomar dosagens diferentes. Não sabemos ainda. Mas precisamos estar alertas — observa a cientista.
Dalcolmo diz que impressiona o número de pacientes com sobrepeso ou obesidade que acabam se agravando e precisando de internação. Ela acrescenta que os problemas não se encerram com a fase aguda da Covid-19. Entre as consequências da síndrome pós-Covid estão distúrbios endócrinos capazes de agravar a obesidade, como a tireoidite. As células gordurosas são a raiz de muitos dos problemas associados à Covid-19. Essas células são doentes e favorecem a inflamação. Há toda uma cascata de problemas e muitos pacientes obesos têm, quase sempre, uma maior carga viral — explica Dalcolmo.
Os sobreviventes da Covid-19, ela diz, precisam de acompanhamento sofisticado:— E aí temos uma nova tragédia. Pois no caos em que nos encontramos, essas pessoas estão desassistidas — lamenta.
Entenda por que a obesidade é fator de risco
Por que pessoas obesas (IMC > 30kg/m2) ou com sobrepeso (IMC- 25 kg/m2 até 29,99kg/m2) correm maior risco de desenvolver Covid-19 grave.
A obesidade é uma inflamação crônica, ligada ao excesso de células adiposas. A tempestade de citocinas deflagrada pelo coronavírus, que agrava a Covid-19, é agravada nos obesos porque a resposta inflamatória deles já é desequilibrada. O sangue das pessoas obesas têm uma maior tendência a formar trombos. Isso é ainda mais perigoso para quem tem Covid-19, caracterizada pela formação de microtrombos, especialmente nos pulmões.
Entram mais vírus nos obesos e a carga viral neles costuma ser maior porque pessoas acima do peso apresentam mais receptores de ECA2, a porta de entrada do Sars-CoV-2 nas células. Estudos sugerem que esse fator é crucial para o agravamento da Covid-19. As células de gordura podem se infiltrar nos órgãos em que são produzidas e armazenadas células do sistema imunológico, como o baço, a medula óssea e o timo, destaca artigo na Science.
Na prática, ocorre substituição de tecido de defesa por tecido de gordura, reduzindo a eficiência do sistema imunológico e facilitando o ataque de vírus. Os obesos têm glicose elevada e isso prejudica o sistema imunológico. Glicose alta afeta os macrófagos, células da primeira linha de defesa contra vírus, a chamada resposta inata. Os macrógafos engolem e eliminam o vírus. Também são eles que “apresentam” pedaços do vírus aos linfócitos para que estes possam produzir anticorpos. O excesso de peso, assim, enfraquece as defesas inatas.
Obesos produzem menos interferon. Estes são proteínas também importantes para a resposta inata do organismo ao ataque de vírus. Os interferons tentam bloquear a multiplicação de vírus. O Sars-CoV-2 se multiplica nas células adiposas, de gordura. Elas podem ser um reservatório do vírus. Os obesos têm maior dificuldade para respirar porque o tecido adiposo comprime o diafragma e não deixa os pulmões funcionarem direito.
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