Sabe-se que, desde a antiguidade, como ainda é hoje, a guerra, com as consequentes invasões, só se justifica para repelir uma agressão estrangeira, na defesa da soberania e integridade territorial do Estado.
Entretanto, a teoria da guerra justa, de Agostinho de Hipona, para quem a guerra seria justa se realizada para assegurar a ordem e a paz de acordo com as normas fundamentais da Cidade de Deus, acabou sendo interpretada ao sabor e conveniência dos reinos da Idade Média, de modo a dar suporte moral, teológico e filosófico para a guerra ou invasão de território alheio com o simples propósito de catequizar os povos de acordo com o evangelho cristão.
A violenta invasão da América e, consequentemente, do Brasil, disfarçada de descobrimento, estava, portanto, suficientemente fundamentada, ainda mais com o aval da Bula Papal de 1493 (Bula Inter Coetera) e do consequente Tratado de Tordesilhas, do ano seguinte, que autorizavam a invasão e concediam a posse e a propriedade ad aeternum das ilhas e terras que fossem descobertas até 370 léguas a oeste a partir de Cabo Verde, ao rei de Portugal, e a partir daí ao de Espanha.
No Brasil, os tamoios (avós, no tupi, no sentido de “aqueles que aqui já estavam”), quando os portugueses chegaram, foram considerados na carta de Caminha apenas como um mero detalhe. Mas a guerra começou de fato a partir da vinda para concreta colonização em 1530.
Pacíficos, os índios até permitiram que invadissem seu milenar território sem autorização. Sua paciência, porém, acabou quando tentaram escravizá-los. Houve conflito. Motivo suficiente para os europeus alegarem a legitimidade de sua conduta. É que as normas da Coroa então vigentes só permitiam a escravização dos vencidos em guerra justa.
Se a guerra era justa, como pensavam, podiam escravizar os índios que, todavia, relutavam, partindo para o resgate de quem era aprisionado, com dura violência. E, então, vieram as cruéis mentiras. Passaram a dizer que os índios não trabalhavam por indolência, vagabundagem.
Para os indígenas, entretanto, o único bem superior à dádiva da vida era a liberdade. Preferiam por ela lutar até a morte. Tanto que não escravizavam outros povos, não conseguindo aprisionar, aliás, nem mesmo animais.
Tudo sob o manto do Direito, os invasores iniciaram então a carnificina. E nas cartas que eram obrigados a dirigir à Coroa justificavam-se com outras injúrias: “os indígenas são pagãos, animalescos e até canibais, não se submetendo à sagrada doutrina cristã”.
A Confederação dos Tamoios até resistiu por longo tempo o sangrento conflito entre Bertioga e o Rio de Janeiro, para considerar apenas o litoral.
Nem mesmo a Carta Régia da Liberdade dos Gentios, de 1570, pôs fim à questão, porque, embora declarando todos os índios livres, fez questão de anotar “exceto aqueles sujeitos à ‘Guerra Justa'”. Alvará e Cartas Régias de 1596, 1609 e 1611, é verdade, asseguravam: “os gentios são senhores de suas fazendas nas povoações, como o são na Serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhes fazer moléstia ou injustiça alguma; nem poderão ser mudados contra as suas vontades das capitanias e lugares que lhes forem ordenados, salvo quando elles livremente o quiserem fazer”. Outro Alvará Régio, de 1680, apenas dava o braço a torcer para reconhecer os índios como “os primeiros ocupantes e donos naturais das terras brasileiras”. E o Tratado de Madri, de 1750, por sua vez, tão somente resolveu pendências territoriais entre os espanhóis e portugueses.
Depois disso, sabe-se que os guarani, por exemplo, em grande parte, ainda foram expulsos pelo Marquês de Pombal para a América espanhola, depois de serem dizimados.
Na Lei 601, de 1850 (Lei das Terras do Império), não se viu modificação relevante.
A Constituição de 1891 se limitou a eliminar a confusão entre terras devolutas e terras indígenas.
Décadas depois, sem tratar de medidas protetivas, o Decreto-lei 5540/43 apenas declarou o dia 19 de abril como o “Dia do Índio”. E três anos mais tarde, na Constituição de 1946, ficou garantida aos silvícolas a posse intransferível das terras por eles ocupadas (artigo 216), mantendo-se a política integracionista (artigo 5º, “r”). Na de 1967, aos índios se reconheceu não só a posse permanente das terras, inalienáveis, mas ainda o usufruto das riquezas naturais nelas existentes. Ainda no mesmo ano, a Lei 5.371 criou a Fundação Nacional do Índio.
Mais um lustro e, então, a Lei 6.001, de 1973, instituiu o Estatuto do Índio que, ainda com visível política integracionista (artigo 1º), definiu índios isolados. Em vias de integração e integrados (artigo 4º), regulou direitos civis e políticos (artigos 5º, 6º, 12), dispondo sobre normas trabalhistas e penais (artigos 14 e 56), regime de assistência e tutela (artigo 7º), educação, cultura e saúde (artigo47) , assegurando, além dos direitos previstos na Constituição de 1967 acerca das terras por eles ocupadas (artigo 22), o reconhecimento do direito dos indígenas sobre as terras onde habitam independentemente de demarcação (artigo 25), mas impondo a demarcação de todas as terras indígenas no prazo de cinco anos (artigo 65).
Enfim, consagrou a CF de 1988 serem “reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (artigo 231) e, além de outros, estabeleceu um dos mais importantes direitos, vedando “a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ‘ad referendum’ do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco” (artigo 231, §5º). Antecipou-se na proteção jurídica das comunidades indígenas brasileiras em relação a muitos dos direitos assegurados na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007.
Cuidou-se até aqui, entretanto, de uma proteção estatal meramente formal, que nunca se concretizou na realidade, visto que os povos indígenas nacionais continuam ainda hoje sendo vítimas de discriminação, desrespeito, agressão moral e física e até mesmo do genocídio similar ao ocorrido nos séculos iniciais da invasão europeia, porque fundado no mesmo assalto sangrento às terras de seu milenar domínio.
O ideal seria que o Estado, primeiro, demarcasse sem mais demora todas as áreas indígenas, porque até agora descumpriu os prazos que lhe foram impostos para esse fim (CF, ADCT, artigo 67; Lei 6.001/73, artigo 65), numa patente infração legal e constitucional a configurar no mínimo improbidade administrativa. Segundo, que abandonasse suas indevidas políticas integracionistas — e além de tudo hipócritas —, respeitando a autodeterminação dos povos indígenas — até por força do artigo 4º da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Certamente, sem a sempre mal-intencionada intromissão de agentes do Estado, que facilita, por corrupção, invasões, grilagens, garimpos e desmatamentos em suas terras, os povos indígenas, como legítimos guardiões da floresta, terão melhores condições de cumprir sua sábia e nobre função de protegerem o planeta.
E não haverá solução para esse inaceitável e interminável constrangimento aos povos indígenas, genuínos brasileiros, enquanto o cidadã dito brasileiro guardar — como lamentavelmente tem guardado a respeito da grande nação aborígene — o injusto preconceito, lastimavelmente estimulado pela história oficial, que leva o comum do povo a definir falsamente o índio como um ser primitivo, não no sentido da ancestralidade daquele que chegou primeiro, mas no sentido de subdesenvolvido, ignorante, desprovido de qualquer racionalidade.
Não há dúvida de que a legislação brasileira, embora alcançando substancial evolução no trato dos direitos indígenas, não cumpriu uma de suas principais funções: a de intervir no processo cultural de toda a sociedade, de modo a coibir de vez a discriminação em relação à intelectualidade indígena, propagada falsamente como inferior.
É necessário compreender que o índio é tão ou mais inteligente quanto qualquer não-índio com elevada escolaridade. É preciso entender que os povos indígenas brasileiros são constituídos há milênios por astrólogos, teólogos, filósofos e médicos formados de acordo com suas próprias exigências culturais, com comprovação histórica de sua eficiência. Tanto que, apenas como exemplo, quando os europeus aqui chegaram, confessaram conhecer, no início do século 16, apenas cerca de trezentas drogas extraídas de plantas medicinais, enquanto os nativos brasileiros já conheciam e usavam mais de três mil.
Na verdade, quanto mais se aprofundarem no conhecimento da história pré-cabraliana, terão certamente os brasileiros inúmeros motivos para orgulharem-se de sua origem, reconhecendo que os índios do país transmitiram às gerações que os sucederam, e continuarão legando às futuras gerações, o espírito libertário, auto-suficiente, fraterno e solidário e, sobretudo, a coragem de lutar até a morte, tanto pela irrestrita liberdade, como para preservar intactos fauna, flora e todos , os elementos da natureza do país e, por consequência, de todo o planeta.
Airton Florentino de Barros é advogado, professor de Direito Empresarial, procurador de Justiça aposentado e fundador e ex-presidente do MP Democrático.