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“O rancor é cruel e a fúria é destruidora, mas quem consegue suportar a inveja?” 

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A indagação que dá título à coluna desta sexta-feira é Bíblica (Provérbios, 27:4), e faz parte dos chamados livros poéticos e sapienciais do Velho Testamento. Atribui-se a Salomão seu enunciado, precedido e sucedido, aliás, por outros que vão no mesmo sentido, formando um corpo lógico de profundo conteúdo moral.


Os três versículos anteriores dizem o seguinte:


1- Não presumas do dia de amanhã, porque não sabes o que ele trará.


2- Que um outro te louve, e não a tua própria boca; o estranho, e não os teus lábios.


3- A pedra é pesada, e a areia é espessa; porém a ira do insensato é mais pesada que ambas.


Ou seja, antes de questionar, sem definir a inveja, Salomão transmite a ideia de precaução em relação ao futuro, à vaidade e aos atos odiosos, mas, ainda assim, deixa encoberta a inveja. Sobre ela, faz uma indagação, o que tanto pode ser uma provocação socrática, quanto uma confissão de incerteza, de não saber.


Ao mesmo tempo, note-se, Salomão alinha no mesmo nível o rancor e a fúria, apontando-lhes a medida do impacto. Contudo, trata a inveja em nível ainda maior, dando a entender que o mal dela decorrente é imensurável. Há, portanto, que contra ela se precaver ainda mais, pois não se tem medida dos danos que causa.


Em sua Epístola aos Gálatas, São Paulo (5,19-21) se refere à inveja e, praticamente, dá uma pista de onde teria saído a lista de pecados veniais constantes do Catecismo da Igreja Católica. Desde Caim, a Bíblia é repleta de referências à inveja como causa de maldades e violência. Santo Agostinho a ela se refere como “o caruncho da alma”.  


Em todos os textos que li, a inveja é sempre tratada no âmbito pessoal. Mesmo quando ideologizada como fez Winston Churchill; “O socialismo é a filosofia do fracasso, a crença na ignorância, a pregação da inveja”, a referência diz respeito ao ato de comunicar, incutir na mente do outro o sentimento de inveja. 


Muito tempo antes, no capítulo Da Inveja, de “A Retórica”, Aristóteles aponta quem são os invejosos e por que razão. Ele afirma que as pessoas geralmente sentem inveja daquelas com as quais são parecidas em aspectos como idade, classificação social, reputação e quantidade de bens. Por exemplo, ninguém sente inveja de quem está na miséria, ou mora em outro país, ou tem grande diferença de idade. É preciso algo como; “no lugar do outro, poderia ser eu a ser, a ter, a dizer, a fazer, a poder…”.


Para o grandíssimo Immanuel Kant, principal nome da filosofia moderna, a inveja é “a propensão de ver o bem-estar dos outros com angústia, mesmo que não prejudique o seu próprio.”. Para ele, tal sentimento deriva da avaliação que fazemos de nós mesmos em comparação com outrem, independentemente dos parâmetros que utilizamos, se reais, objetivamente condizentes com a nossa posição ou não.


Para outros, a inveja entra no campo da psicologia humana como um traço de caráter, e não um transtorno comportamental como tantos que surgem ou são identificados modernamente, para os quais há tratamento estabelecido. A eminente psicanalista austríaca Melanie Klein, identifica na infância a origem deste sentimento, aludindo a um certo desequilíbrio segundo o qual a criança perde o próprio centro para desejar ser o outro e não ter seus próprios desígnios. De todo modo, conclui que se trata de um sentimento que aprisiona, determinando, portanto, limites à personalidade. Neste sentido, a psicanálise teria um papel importante a desempenhar na relação do indivíduo com este sentimento, mas quem chega ao consultório e declara querer tratar a própria inveja?


É claro que não se trata aqui de uma discussão filosófica ou religiosa sobre a inveja. Não sendo membro de nenhuma religião, embora crente em um Deus, trago esse tema apenas porque em meio ao debate que vivemos nos dias de hoje, de vez em quando identifico em algumas análises e declarações, uma dose de inveja tão evidente quanto repugnante e perigosa. 


É, me parece, muito próximo da política este sentimento destrutivo que nem Salomão ousou medir. A maledicência costumeira, a competição sem freios morais, a disposição ao desvio ético, a comemoração da derrota de outrem, a torcida permanente pelo fracasso alheio, tudo isso e outros comportamentos, mesmo que estejam fundados em disputas políticas legítimas, tendem a apresentar a inveja como motriz.


Muitas vezes, mesmo pertencendo ao mesmo campo ideológico e defendendo a mesma pauta de princípios e valores, determinados atores se confrontam num nível abaixo do razoável, fazendo parecer ao homem do povo que não se trata da defesa de um ideário que o contemple e aos seus interesses, mas de uma luta intestina por poder e prestígio pessoal. Arrisca o cidadão, observar com certa repulsa o teatro político, aí incluída a própria mídia e outras instituições da sociedade. A cena parece salpicada de inveja.



Valterlucio Bessa Campelo escreve contos e opiniões às sextas-feiras no ac24horas e em seu BLOG.