No último domingo, na capital baiana, mais precisamente no Farol da Barra, um dos principais pontos turísticos da cidade, a Polícia Militar baiana abateu como se fosse um animal selvagem, um de seus membros, o Cabo Wesley Soares. Seu crime? Nenhum. Em frases curtas e assertivas, bem ao estilo da caserna, de arma em punho, sem alvo determinado, ele deu tiros para cima e gritou “Eu não vou deixar, não vou permitir, que violem a dignidade humana de um trabalhador”. Foi o bastante para que seus próprios colegas de farda, escudados em um veículo, o crivassem de balas sob o luar de Salvador.
Falaram com ele? Tentaram dissuadi-lo? Negociaram? Chamaram sua família para acalmá-lo? Não há registros de que tenha acontecido, embora a versão do governo diga que tudo foi feito conforme o protocolo. De todo modo, se tentaram, falharam desgraçadamente, daí resolveram tratar como bicho feroz um policial militar, que diz que o governo baiano entrou em surto psicótico, estava fora de si e, armado, ameaçava a população”. Suas últimas palavras, entretanto, demonstram perfeita concatenação e lucidez. Parecia mais um homem revoltado, se declarando incapaz de prosseguir agindo contra a liberdade do trabalhador, nada disse ou fez que se caracterize ameaça às pessoas.
Aquelas cenas chocaram profundamente o brasileiro de bem. Meu Deus! Como explicar tamanho desprezo pela vida humana? Da versão pouco crível do governo baiano só uma certeza – foi dada uma ordem, alguém mandou que matassem o policial, logo, há responsáveis.
A morte do Cabo junta-se neste momento a centenas de ocorrências em todo Brasil, de abusos cometidos por policiais e guardas municipais contra trabalhadores, ambulantes e pequenos comerciantes que tentam manter minimamente as atividades com as quais conseguem alimentar suas famílias. As mídias sociais estão repletas de imagens de pessoas simples sendo impedidas de levar pra casa o jantar dos filhos. O “fique em casa” se transformou em “você está preso”. No contexto, há sempre uma ordem dada e cumprida à risca, o que me faz lembrar a grande filósofa judia Hannah Arendt.
Ela nasceu na Alemanha em 1906, foi aluna brilhante, se doutorou aos 22 anos em Filosofia na Universidade de Heidelberg, foi presa e perseguida pelo nazismo, fugiu em 1941 para a França e, de lá, para os Estados Unidos, onde prosseguiu sua carreira profissional. Seu primeiro livro “As origens do totalitarismo” foi lançado em 1951 e já lhe deu alto prestígio nos meios acadêmicos. Em 1961 voltou à Alemanha com a missão de cobrir em Jerusalém o julgamento de Adolf Eichmann, figura importante do Nazismo, que havia sido encontrado na Argentina, de onde saiu sequestrado pelo Mossad. Um filme sobre Hannah e o julgamento pode ser visto AQUI. Outro, sobre a prisão de Eichmann, está no catálogo de uma plataforma de vídeos, sob o título “Operação Final”.
Foi durante o julgamento que Hannah Arendt identificou as bases, elaborou e, em 1963, publicou no livro “Eichmann em Jerusalém”, sua proposição teórica sobre a banalidade do mal, gerando enorme polêmica, especialmente entre os que se sentiram ultrajados pela “humanização” do criminoso e pela referência ao “colaboracionismo” de alguns judeus com os alemães na II Guerra.
Em síntese, como é próprio deste espaço, diga-se que Hannah Arendt saiu do julgamento convencida de que aquele homem, responsável pela logística de transportes de judeus para os campos de concentração, portanto, peça chave no sistema, não passava de um burocrata apegado ao cargo e à carreira. Era um homem “terrível e assustadoramente comum” que durante todo o tempo esteve a cumprir ordens, por mais insanas e cruéis que fossem. A isto ela chamou de banalidade do mal, ou seja, de como o mal infinito pode ser realizado automaticamente, sem exame de profundidade e sem consciência de extensão, por homens comuns que cumprem ordens.
Não parece ser o que fizeram os assassinos do soldado Wesley? Não parece coerente com os abusos, agressões e intimidações de todo tipo executadas sob a ordem de fechar lojas, apreender mercadorias na rua e trancar todos em casa? Perguntem aos assassinos de Wesley e eles dirão o mesmo que Adolf Eichmann, que apenas cumpriram ordens. Pergunte ao guarda municipal que algemou e socou a vendedora de sucos e ele dará a mesma resposta. O mal, neste caso representado pelo assassinato do jovem policial baiano, se nos apresenta diariamente e, aos poucos, nos acostumamos com ele.
Desde o início da pandemia aceitamos quase sem questionar que nos trancassem em casa, depois, que fechassem os comércios, e, ultimamente, que as noites serão desertas. Nossos doentes não puderam continuar seus tratamentos, nossas crianças e jovens perderam o ano letivo, ambulantes perderam suas quinquilharias, comerciantes perderam décadas de trabalho e, outros, a saúde mental ou a própria vida. O pavor da peste chinesa, alimentado diariamente pelas TV’s, nos paralisa e gera consentimento, favorecendo a banalidade do mal.
Em sua reflexão, Hannah Arendt acusa: “Em nome de interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam. Abdicar de pensar também é crime.” Eis o ponto em que muitos se encontram, incluindo jornalistas que cavalgam na garupa do politicamente correto, sem nenhuma reflexão. Fomos levados a não discutir, a aceitar bovinamente que não há tratamento para a peste, que é preciso esperar a falta de ar para iniciar a medicação, que temos que tomar qualquer vacina, ainda que precariamente autorizada pelos órgãos de controle sanitário, que temos que cumprir o protocolo máscara – álcool nas mãos – fique em casa e que a ordem vem da ciência, a nova “deusa”, como já escrevi em artigo recente. Estamos perdendo o pensamento crítico e cumprindo ordens.
Foi isso que puxou o gatilho das armas que mataram o soldado na Bahia. Os assassinos abdicaram de pensar e, em consequência, agir humanamente com seu colega. Os gritos de Wesley em defesa da dignidade do trabalhador não foram como querem fazer parecer, um espasmo psicótico de um homem surtado. Ouçam o que ele disse e verão que há muito mais senso crítico em suas palavras, portanto, mais consciência, do que na ordem dada aos seus executores, seja lá em que status tenha sido emitida. Se alguém surtou, foi quem disse: atirem!
É arendtiano perceber que os colegas que o assassinaram não são em si mesmos monstros morais, não o odiavam, talvez, nem sequer discordem do que ele gritava ao vento, apenas, normalmente, cumpriram ordens. Guardadas, obviamente, as devidas proporções, os atiradores são, como Adolf Eichmann, uma perigosa expressão da banalidade do mal.
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