Como toda semana, dedico-me um tempo a escrever esta coluna que o site ac24horas gentilmente publica às sextas-feiras, me dando oportunidade de comunicar algumas ideias para reflexão de seus leitores. Havia pensado, desta vez, em fazer uma abordagem do que vemos nos dias de hoje, com especial interesse na ação de policiais, fiscais e demais agentes públicos, cada um no seu nível de responsabilidade, em cumprimento aos decretos de lockdows e demais restrições de combate à pandemia. As cenas de insensibilidade (para dizer o mínimo), banalizadas e distribuídas às centenas nas mídias sociais, são preocupantes para quem como eu tem a liberdade como valor sagrado e direito fundamental. Hannah Arendt é um farol para esse tema.
Esta semana, entretanto, mudei de idéia ao rever as imagens do menoscabo com que, em outro campo, o da comunicação, são tratados os efeitos do fechamento da economia. No “Jornal Hoje” desta quarta-feira, a apresentadora Maria Julia Coutinho, conhecida como Maju, atual queridinha do politicamente correto, disse o seguinte: “Os especialistas são unânimes em dizer que essas são medidas indispensáveis agora para conter a circulação do vírus. O choro é livre, não dá pra gente reclamar, é isso que tem”.
Não é, como se poderia entender em vista rápida, uma frase infeliz, um descuido, um lapso, um ato falho. Trata-se de ter como trivial o sofrimento indizível e incalculável provocado pelo fechamento da economia na vida de milhões de brasileiros. Na principal empresa de comunicação do Brasil, não importa espalhar o terror e justificar o caos desde que seu intento seja alcançado, é preciso o descaso. Prova disso, a TV Globo haver endossado em nota a arrogância da sua apresentadora.
Em primeiro lugar, Maju mente. Não são TODOS os especialistas que endossam o lockdown como solução única para a situação. Há dezenas de estudos e experiências em sentido contrário, logo não “é isso que tem”. Em segundo, dá pra reclamar sim, sempre podemos reclamar. Aceitar o contrário é submeter-se à ditadura do pensamento único, é entregar a liberdade de expressão, é amesquinhar-se, é anular-se como indivíduo. A respeito de tudo isso, pode-se dizer, ainda, como a seguir, muito mais.
Apenas na América Latina e Caribe, o número de pobres aumentou em 22 milhões de pessoas. Segundo a CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, os pobres da região já são 209 milhões, praticamente um Brasil inteiro. Se interessa saber, a extrema pobreza aumentou em mais de 10% em 2020, são 78 milhões de pessoas que choram sem se sentirem livres.
Segundo a UNICEF, a desnutrição deve ter aumentado em cerca de 14% nos países em desenvolvimento. O fechamento das escolas e a consequente falta de merenda escolar, fundamentais nas regiões mais pobres, tornam 7,0 milhões de crianças livres pra chorar de fome sem que a Maju ouça ou se incomode.
Nas camadas intermediárias, as chamadas classe média, 12% dos latinos americanos tiveram decadência em seu status econômico. São 50 milhões de pessoas que desfizeram seus planos, venderam seus bens, desistiram de seus negócios, perderam suas rendas e não choram por querer.
Sabe a desigualdade de renda, tão veementemente vociferada para traduzir a “injustiça” do sistema capitalista? Aumentou em 2,9 pontos em 2020 na América Latina. O índice de Gini, que mede a diferença entre os ricos da patota da Maju e os pobres das periferias, teria aumentado 5,6 pontos se não tivessem chegado os auxílios governamentais. Seria ainda mais alto o choro.
Na mesma região – a América Latina, o crescimento médio do desemprego foi de 2,6%, o que significa um incremento próximo a 30% na taxa global de desempregados, chegando no total a níveis próximos de 11%. São milhões de pessoas sem rumo, sem alento, sem esperança que vá além do fim do dia. Eles não choram livremente.
Segundo a CNC – Confederação Nacional do Comércio, em 2020, o saldo entre abertura e fechamento de estabelecimentos comerciais com empregados é negativo em 75.000. Aonde estão seus proprietários e empregados? Estariam chorando?
Apenas no Brasil, a venda de antidepressivos aumentou 17% em 2020. São pessoas que não conseguem lidar bem com a insegurança, com o desemprego, com a perda de parentes, com a frustração de seus projetos, com o pavor gerado por sua TV, com o confinamento, com a iminência do contágio… essas pessoas são livres, mas não é por isso que choram.
Segundo o Radar do Câncer, o número de biópsias diminuiu em 39% de março a dezembro de 2020. As mamografias diminuíram em 49%, as colonoscopias diminuíram 36%. Quase 37% dos exames de PSA deixaram de ser realizados – os homens também tem medo. As cirurgias eletivas diminuíram em 22% no SUS, os novos casos de quimioterapia diminuíram em mais de 7%. Toda essa gente que não acessou os sistemas de saúde está entre nós, adoecendo silenciosamente, talvez chorando às escondidas.
Segundo pesquisas recentes da FIOCRUZ, UNICAMP, e UFMG, o consumo de bebidas alcoólicas teve um aumento de 17% durante a pandemia. Milhões de pessoas se embriagam com frequência cada vez maior buscando fuga e alternativas à vontade de chorar.
O CVV – Centro de Valorização da Vida, que recebe ligações e ajuda pessoas que de algum modo se inclinam ao suicídio, teve um aumento de 5,4% nas ligações recebidas em 2020. Embora o número de vítimas e as reais causas demorem a ser examinadas, não se pode deixar de considerar que na crise de 2008, nos EUA, o aumento de casos foi de 8%. Quanto haverão de chorar essas almas atormentadas?
Então, dona Maju, o choro não é uma liberalidade, não é uma escolha como a senhora fez parecer, é uma contingência do sofrimento, da angústia, da impotência perante as autoridades. Livre é o grito da vendedora de refrigerantes sendo proibida na rua, do vendedor de espetinhos impedido na praça, do garçom desempregado, do comerciante falido, da cozinheira sem salário, do doente desamparado e de tantos outros que não conseguem escapar dessa cilada monstruosa. Fora isso, também é livre o deboche.
Valterlucio Capelo escreve todas às sextas-feiras no ac24horas.
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