Por Denis Lucas
Da mesma forma que acontece em várias áreas, a ideia de cultura do cancelamento ou canceling, tem origem no estrangeiro, mas como se viu recentemente no famoso reality show que se encontra em sua vigésima primeira edição, onde a participante Karol Conká teve uma conduta desaprovada pelos telespectadores, e além das muitas críticas manifestadas contra a artista, foi vítima do cancelamento, sendo que em uma reportagem divulgada pela Revista Exame (02/02/21), Conká teria perdido “mais de 200.000 seguidores nas redes sociais”. Outro caso, não tão recente, mas de maiores repercussões, foi o caso da escritora JK Rowling – famosa por escrever os livros da saga Harry Potter, quando num debate sobre a palavra “mulher”, defendeu sua ideia de que “se sexo biológico não é real, a realidade vivida por mulheres globalmente é apagada (…), mas apagar o conceito de sexo (biológico) remove a capacidade de muitas pessoas discutirem o significado de suas vidas. Falar a verdade não é discurso de ódio”. Por isto a escritora foi considerada transfóbica.
Disso tudo dito até agora, o que podemos pinçar como a fagulha que acende essa fogueira social, é a manifestação do pensamento, que está umbilicalmente ligada à dignidade da pessoa humana, garantida como direito individual abstratamente previsto no texto constitucional, a manifestação de pensamentos ou ideias está umbilicalmente ligada aos direitos da personalidade, que já nasce juntamente com a pessoa humana, independente de jusnaturalismo, e que, também, tem seus limites traçados dentro do contexto social, conforme visto pelos casos acima.
Analisando todos esses fatos sociais, onde, de um lado encontramos uma manifestação de pensamento, baseada na liberdade expressão, e algo que foi dito em meio de uma multidão de estranhos, ou uma piada compartilhada entre amigos corre o mundo, e do outro lado, geralmente pelo meio eletrônico das redes sociais, estão aqueles que se levantam contra a ideia ou as convicções pessoais manifestadas, os canceladores, que por não comungar da ideia, ou que particularmente consideram errado, protestam e dão providências nas redes sociais.
É no mesmo sentido contencioso e cancelativo, a publicação jornalística que acaba por expor e ridicularizar a pessoa que é alvo de notícia, que muitas vezes se espalha nas redes sociais.
Nos dois casos há a colisão entre direito de liberdade de expressão, e no caso de imprensa a comunicação social abrange a liberdade de pensamento, de expressão e de imprensa.
Importante destacar que no Brasil não adota a teoria americana do hate speech – que é o discurso público que expressa ódio, desprezo, intolerância ou incentiva a violência contra pessoas ou grupos, que se baseia na ampla liberdade de expressão.
Dessa colisão de interesses (liberdade de expressão contra liberdade de expressão; liberdade de expressão contra liberdade de imprensa) o jurista tem a interpretação e aplicação do direito unidas e somadas aos múltiplos interesses conflitantes na relação jurídica examinada, em concreto, de forma a definir qual interesse será preponderante. TEPEDINO (2020) ensina que “essa operação de sopesamento dos interesses potencialmente em conflito para a definição da norma aplicada ao caso concreto é conhecida como ponderação”. A ponderação é descrita em três etapas: a) identificação das normas pertinentes ao caso concreto e seus potenciais conflitos; b) exame dos elementos fáticos e sua interação com o elemento normativo; c) atribuição de pesos às normas em disputa, decidindo-se quais devem preponderar em face as demais[1].
A proporcionalidade é um dos princípios ou vetor de maior aceitação, inclusive na jurisprudência do Pretório Excelso – o Supremo Tribunal Federal, que utiliza o mencionado princípio nas interpretações conformando ordenamento infraconstitucional à luz da Constituição de 1988.
A proporcionalidade não pode ser confundida com a razoabilidade, esta última tem origem e estrutura diferente. A razoabilidade ou reasonablenss tem origem no direito anglo-saxônico, tendo como premissa o caso de Wednesbury Corporation, na Inglaterra, e do caso Lochner, nos Estados Unidos da América. Esse princípio tem como característica a razoabilidade interna (compatibilidade entre meio e fim) e externa (legitimidade dos fins).
Já a proporcionalidade ou Verhältnismässigkeit, é originária do direito germânico, seus elementos são: a) adequação ou idoneidade (Geeignetheit), que interligação entre meios e fins; b) necessidade ou exigibilidade (Erforderlichkeit), que busca meios menos gravosos para a obtenção dos fins pretendidos; c) proporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismässigkeit), é a ponderação entre o encargo imposto e o benefício trazido pela medida.
Apresentado esse contexto jurídico que mostra o princípio da proporcionalidade como um instrumento disponível ao jurista ou operador do direito a fim de balancear ou ponderar os interesses que se colocam em rota de colisão, que de um lado pode haver uma manifestação de pensamento, que é debatida no meio social através da internet, e busca-se como um movimento social revolucionário, verdadeiras sanções de natureza social.
É verdade que a cultura do cancelamento foi criada com o objetivo de combater injustiças sociais, e realmente pode ser uma ferramenta eficaz na luta contra patologias sociais, contudo, diante do contexto social em que vivemos, somando-se a situação da pandemia provocada pelo coronavírus, que acabou jogando ainda mais pessoas no meio virtual que anseiam por informação, e numa cultura de massas[2], que é mais acessível, tendo em vista a informalidade da comunicação que acaba por interligar essas pessoas, dentro de uma rede social, na qual esses usuários assistem como espectadores os eventos e desses acontecimentos, apresentam, também, suas manifestações: à favor de algo, ou se posicionam contra alguma ideia, e disto, comentam, compartilham, pedem likes. Estas condutas, muito comuns nas redes sociais, seja: Youtube, Facebook, Instagram, Twitter, elas podem ter reflexos patrimoniais sérios na vida da pessoa alvo de um cancelamento. A imprensa registrou o caso de uma blogueira, que durante as medidas mais restritivas, realizou festas particulares que claramente mostrava aglomeração de pessoas, e os seus próprios seguidores discordaram da conduta, e pediram que as marcas que patrocinavam a influencer que rescindissem os contratos de patrocínio, ou seja, isto trouxe sérios reflexos ao patrimônio da pessoa vítima do cancelamento. Outra conduta dos canceladores/seguidores é deixar de seguir, dar “deslike” – que pode ser entendido como desgostar, isto é algo que impacta qualquer pessoa que empreende por meio da mídia digital, de forma a reduzir a quantidade de seguidores, também, trazendo sérias interferências à contratos de patrocínio, permuta, recebimento de brindes etc.
O que acontece é que essa massa social navegante das redes sociais, muitas vezes excitadas pelo calor dos debates nas redes sociais sobre temas infindos, esquecem, ou não mensuram as consequências de uma manifestação de cancelamento nas redes sociais.
O código civil de 2002, diferente da lacuna que havia no código de 1916, traçou parâmetros sobre o abuso de direito conforme o art. 187, que diz “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”, e isto é bem fácil de subsumir em relação a conduta de cancelamento, que pode parecer um exercício de direito, mais que extrapola os limites traçados na norma e pode acabar violando um direito da personalidade, como a moral do indivíduo, que no ordenamento tem sua proteção no âmbito civil – relativo à moral, conforme art. 5º, V da CF, c/c art. 12 e 20, ambos do Código Civil, e com base no princípio da mínima intervenção e fragmentariedade[3], o Direito Penal protege a honra, em seu aspecto objetivo e subjetivo, nos arts. 139, 140 e 141, todos do Código de Delitos.
Da mesma forma que uma pessoa que tem repercussão no meio social digital, como se diz na linguagem do Instagram: é um perfil verificado, manifesta uma ideia e pode ser vítima de cancelamento, os seguidores, canceladores, ou os haters – que são pessoas que se posicionam contra algo ou alguém, precisa ter a devida cautela com suas publicações ou postagens, para que não incorra em abuso de direito, seja se manifestando ou comentando algo de outrem. Assim, o Enunciado n. 139 do Conselho da Justiça Federal, na III Jornada de Direito Civil, dispôs que: “os direitos da personalidade podem sofrer limitações, ainda que não especificamente previstas em lei, não podendo ser exercidos com abuso de direito de seu titular, contrariamente à boa-fé objetiva e aos bons costumes”.
A boa-fé, da mesma forma que a proporcionalidade, é uma cláusula geral que pode ser expressa ou implícita, que fica a cargo do julgador – analista do caso concreto, que se baseia na previsibilidade de comportamentos. A boa-fé tem como função, ainda, a restrição do exercício abusivo de direitos, sendo “que as figuras parcelares configuram topoi argumentativos proveitosos na concretização da boa-fé”[4].
Pode-se, então, concluir que a dignidade da pessoa humana livre se concretiza nos direitos da personalidade e se materializa por meio de manifestações de ideias e pensamentos, que estão passiveis de represarias, como no caso do cancelamento nas redes sociais, como a resposta às manifestações de pessoas notórias, devem ser, no caso concreto, ponderadas ou balanceadas com base na proporcionalidade acima apresentada, não se limitando somente à esse postulado, tendo em vista a imensidão do ordenamento jurídico e as particularidade in concreto, com objetivo de se evitar abusos tanto na conduta do ator, quanto na resposta do espectador. A proporcionalidade mostra-se promissora na ponderação de conflitos de interesses manifestatórios que venham surgir no meio digital tanto do cancelador quanto do cancelado.
Denis Lucas é graduado em Direito pela Faculdade Barão do Rio Branco (2012), pós-graduado em Processo Civil na UCAM-PROMINAS (2015), técnico judiciário no Tribunal de Justiça do Estado do Acre (desde 2011). Foi diretor de Secretaria (2014-2018) na Vara de Execução Fiscal da Comarca de Rio Branco-AC e atualmente está lotado no Gabinete da 1ª Vara do Tribunal do Júri.
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