Ao longo de 118 anos de uma das maiores tradições religiosas do Acre, não se tem relatos conhecidos de que no dia 20 de janeiro de qualquer um dos anos subsequentes ao distante 1902 não tenha havido em Xapuri uma grande procissão percorrendo as principais ruas da cidade e reunindo romeiros e fiéis católicos de vários pontos do Acre e até de outros lugares do Brasil.
Em 2021, não haverá a Festa de São Sebastião em Xapuri. Pelo menos não da maneira como ela é costumeiramente promovida anualmente e intensamente conhecida além dos limites da pequena cidade onde se deu o início da Revolução Acreana, seis meses antes da eclosão do movimento armado que começou a tornar brasileiros todos os acreanos, desde então.
Dentro das normas sanitárias de prevenção à disseminação do novo coronavírus, o Novenário de São Sebastião será realizado pela igreja, a partir desta segunda-feira, 11 de janeiro. A parcela religiosa do evento que há muito tempo extrapolou o âmbito da fé e da devoção não sofrerá o total prejuízo, mas a parte comercial, de grande importância econômica para a cidade, não existirá.
Motivada pela chamada segunda onda da covid-19, a prefeitura suspendeu todas as atividades comerciais, culturais e esportivas que comumente fazem parte de uma programação conjunta com o calendário de atividades da igreja. Assim, não virão a Xapuri os tradicionais marreteiros e não estarão nas ruas e praças da cidade os restaurantes populares e feiras de artesanato.
É fato incontestável que a Festa de São Sebastião, em seu formato tradicional, é a fonte da renda angariada por muita gente para enfrentar todo o curso do ano. A própria paróquia se enquadra nessa condição, tirando dos leilões, bingos e quermesses a arrecadação com a qual se mantém e promove suas obras no decorrer dos 12 meses seguintes à realização do grande evento.
Parte do comércio formal da cidade também sofrerá as duras consequências da condição de excepcionalidade da festa deste ano. As poucas pousadas e hospedarias, assim como os também reduzidos restaurantes e pensões, que já vêm sofrendo grandes prejuízos no decorrer da pandemia, receberão agora o chamado golpe de misericórdia.
Um levantamento feito pela prefeitura de Xapuri em 2018, com a ajuda do Sebrae, constatou que a Festa de São Sebastião movimenta mais de R$ 1 milhão na cidade durante os nove dias de celebrações em todas as atividades que são desenvolvidas. Para o prefeito Ubiracy Vasconcelos esse será o maior impacto da pandemia para o município do ponto de vista econômico.
“Serão muitos os prejuízos, com dezenas de empregos temporários nos restaurantes, praça de alimentação e parques, que não serão gerados neste ano. A própria igreja, que o seu momento forte de arrecadação durante a festa, terá dificuldades. Nós temos pensado em algumas alternativas para reduzir essas perdas, mas as opções são poucas”, lamentou o gestor municipal.
O empresário Victor Pontes, proprietário da pousada Ayshawa, disse ao ac24horas que tem feito algumas reservas para o período festivo, mas informou que ainda não havia sido notificado pela prefeitura da suspensão das atividades comerciais. De acordo com ele, os impactos da situação provocada pelo vírus podem ser irreparáveis para o setor no município.
“Por enquanto estamos fazendo reservas sim, pela classificação do Pacto Acre sem Covid em que estamos no momento. Também não recebemos ainda o comunicado da suspensão das atividades. Vamos ver essa situação a respeito dos festejos com a prefeitura. É uma pena, esse vírus causando impactos irreparáveis. Vamos orar”, afirmou o empresário.
No que diz respeito exclusivamente à programação da igreja, a abertura do Novenário ocorrerá no dia 11, segunda-feira, apenas com a tradicional carreata que será finalizada com a aspersão dos participantes com água benta. As novenas ocorrerão a partir do dia 12, com limitação de pessoas, seguindo os protocolos, segundo a direção da paróquia.
No dia 20 de janeiro, ponto alto do evento, a imagem de São Sebastião será exposta em uma tenda fora da igreja também com medidas preventivas para a veneração dos fiéis. Ainda não foi definido se a celebração do dia será presencial ou apenas online. Não haverá procissão, mas apenas uma carreata, às 16 horas, em um percurso maior que o feito tradicionalmente.
O único evento não religioso que a igreja realizará será o também tradicional Bingão do Padroeiro, que neste ano será no formato de sorteio eletrônico. Serão sorteadas 40 bezerras adquiridas pela igreja por meio de doações de fiéis e devotos de São Sebastião. A atividade será a única por meio da qual a paróquia arrecadará recursos financeiros no período da festa.
Uma das duas maiores manifestações religiosas do estado, a Festa de São Sebastião reúne anualmente em Xapuri cerca de 20 mil pessoas em seu ápice que é a grande procissão do dia 20 de janeiro. Neste ano, diante das restrições causadas pela pandemia, o cenário que impera às vésperas do evento é de dúvidas e incertezas.
Nader Sarkis, membro do Conselho Paroquial da Igreja de São Sebastião, diz que há uma incógnita sobre como se dará o novenário deste ano sobre vários aspectos, uma vez que praticamente todas as atividades relacionadas à festa envolvem aglomeração de pessoas, seja nas celebrações ou nos eventos que são realizados de maneira paralela à programação religiosa.
“Estamos preocupados com todas essas questões porque a igreja está muito comprometida em não desobedecer às normas sanitárias, mas temos buscado alternativas para que algumas atividades possam ocorrer, respeitando os protocolos, considerando que esse é um momento em que a paróquia arrecada a maior parte dos recurso com que se mantém durante o ano”, explicou.
O pároco de São Sebastião, padre Francisco das Chagas, que no fim de janeiro será transferido para Epitaciolândia, diz que terá uma despedida triste da festa do santo padroeiro da cidade, evento que ele conduz há 15 anos. O religioso afirma, no entanto, que o momento excepcional não deve ser motivo de desânimo para a comunidade católica, que precisa se manter forte.
“É uma situação que jamais esperávamos, mas a equipe da paróquia está empenhada em organizar as atividades da maneira mais correta possível, respeitando as normas de prevenção, tanto no que diz respeito à parte religiosa quanto aos eventos que a igreja realiza. É um momento muito difícil, mas temos que superar com a ajuda de Deus e dos fiéis”, disse.
A festa
A festa de São Sebastião nasceu, segundo relatos orais, no limiar da revolução armada que deu origem ao processo que mais tarde tornaria o Acre brasileiro. Era 20 de janeiro do histórico ano de 1902, quando um grupo de cerca de 100 pessoas teria realizado a primeira procissão pelas ruas do pequeno vilarejo de Mariscal Sucre, então dominado pelos bolivianos.
O ato que poderia representar um pedido de proteção contra a guerra iminente se tornou a certidão de nascimento de uma das maiores manifestações religiosas de todo o Acre. Do início do século passado até a atualidade, a festa cresceu e extrapolou o caráter meramente religioso, tornando-se, para a população, o seu maior momento de fé e de manifestações de agradecimento.
Além do caráter religioso, a festa também é marcada por eventos profanos. Bailes dançantes, jogos de azar e uma atração à parte, a gigante aglomeração de vendedores ambulantes, conhecidos popularmente como “marreteiros”, que se tornou parte integrante e indispensável para o sucesso anual da festa, que em 2021 terá que se adequar às imposições de um vírus para se manter viva.