Por Antonio Franciney de A. Rocha
O núcleo urbano de Cruzeiro do Sul não nasceu apenas em 1904, a Casa dos Ruelas não é a mais antiga construção, muito menos a primeira construção em alvenaria da cidade, assim como não existe uma Cobra Grande adormecida no morro do Fórum, ah, e um Dragão no subsolo da Catedral.
Num exercício prazeroso de desfazimento de lendas, início pelo Dragão da Catedral, a lenda mais fácil de provar, pois o dragão existe não no subsolo, mas na parede atrás do altar, subjugado, derrotado pela Mulher-mãe com o Filho-redentor do mundo que acabara de nascer, abrigado em seus braços, representando a luta do bem contra o mal, que, segundo a fé cristã precede a criação do próprio Universo, numa belíssima pintura (baseada no Livro de Apocalipse) dos artistas (pai e filho alemães) Lorenz Heilmair e Lorenz Johannes Heilmair, de 1979. Assim, não se trata de lenda, mas de perspectiva.
Quanto à Cobra Grande, lerdamente adormecida feito cinderela numa enorme loca embaixo do morro do Fórum, teria sido pega de surpresa quando lentamente o Juruá mudou o curso após uma vazante no esmorecer dos anos 70. Logo ela, que tem a fama de ter cavado os maiores rios do mundo e mudar seus cursos quando lhe dá na vontade… Dizem, que de vez em quando, revoltada com a prisão que deve durar até que o rio, seu príncipe, retorne ao antigo leito, ela se contorce e é possível ouvir um estrondo que vem das profundezas… Uma vez, na sala do Tribunal do Júri do antigo Fórum (já demolido), durante um julgamento, ouviu-se um grande estrondo e o chão da sala sofreu uma rachadura causando séria avaria no piso. Essa falha no piso de cerâmica eu cheguei a ver (nos meados dos anos 90 quando dormitava por ali na condição de “papa sereno”), assim como o enorme pé de jambo ao lado cujas raízes mergulhavam embaixo do prédio, mas isso era só um detalhe… após uma possível perícia, talvez a conclusão tenha sido que o problema das rachaduras tivesse a ver com as raízes, que tinham mergulhado nas profundezas e enfezado a enorme serpente. Quem sabe…
Cruzeiro do Sul, estrategicamente formatada em 1904 pelo Governo Federal para assegurar a posse sobre um território rico em borracha, tem uma História construída sob o império das vontades de serpentes e dragões… Nesta metáfora cabem todos aqueles que movidos pelas mais inconfessáveis razões, tem contribuído para sepultar a nossa breve História, construída, infelizmente, de omissões e abandonos.
Um desses casos é a Casa dos Ruelas, que não é a mais antiga construção, muito menos a primeira construção em alvenaria da cidade, mas tanto fizeram e deixaram de fazer que figura como um símbolo, que incomoda e humilha pelo descaso num ridículo jogo de empurra-empurra. E antes de prosseguir, reafirmo: este texto não é apenas em defesa das ruínas, pela construção em si, mas pelo que representa.
Em 1940, plena II Guerra Mundial, com a Alemanha voltada para o chamado esforço de guerra, mesmo que naquele ano o governo brasileiro fosse ainda simpático às ideias nazistas (deixaria de ser apenas em 42), os recursos não chegavam à Prelazia do Alto Juruá, que tinha como fonte principal justamente o dinheiro dos alemães.
Foi quando o Bispo resolveu liberar o Ir. José para realizar obras pela cidade e garantir a sobrevivência.
O “Palacete dos Ruelas”, como preferem os megalomaníacos, é um símbolo dos tempos em que a nossa principal riqueza ainda era a borracha e os empresários cruzeirenses estavam voltados para a exploração de seringais. Um desses seringalistas era o português Joaquim Maria Ruela.
Joaquim Maria Ruela não era um homem comum. Proprietário do Seringal Alegria, no Juruá, católico fervoroso (o maior sino da Catedral foi doado por ele em 1947), respeitado na região, tinha amizade suficiente com o Bispo Dom Henrique Ritter para solicitar a liberação do construtor das obras da Prelazia para erguer sua residência no exato local da sede do Seringal Centro Brasileiro, construída pelo antigo proprietário Antônio Marques de Menezes – vulgo “Pernambuco”, antes de 1900.
A Casa dos Ruelas não é, portanto, a construção mais antiga de Cruzeiro do Sul, mas é como se fosse, pois foi construída no lugar da mais antiga, sendo considerada por este historiador, o “marco zero” de Cruzeiro do Sul. Quando nos primeiros meses de 1904 as tropas federais do 15º Batalhão de Infantaria do Exército adentraram o Juruá indo acampar na Boca do Môa, passaram diante do Sobrado do Pernambuco. A Casa dos Ruelas (o lugar da casa, para não incorrer em anacronismo) data então, pela cadeia dominial, de um tempo anterior à Fundação da Cidade de Cruzeiro do Sul. Não é pouco.
E completa 80 anos feito um “bode na sala”. Sim, a analogia é adequada porque não posso falar que brotam flores num lugar que os “apertados sem banheiro” do centro da cidade usam para defecar, ou os noiados se consomem. A população da cidade, as autoridades responsáveis pela preservação do Patrimônio Histórico, os proprietários, todos reconhecem sua importância e ninguém a quer. Ou, não a querem com os mesmos interesses, pelas mesmas razões.
De uns anos pra cá, penso na Casa dos Ruelas como a hipotética situação em que um cidadão já bastante idoso, viúvo de quase tudo, cheio de filhos e netos, todos miseráveis, tenham como único patrimônio uma casa caindo aos pedaços mas no centro da cidade, recebendo diariamente propostas tentadoras dos capitalistas, mas, sem grandes ambições, apegado ao pouco que lhe resta dos melhores dias, se recusa a vender seu único e valioso bem. Como uma maldição, filhos e netos só poderão negociar a casa quando o velho morrer, se vier a morrer (o que já se duvida), o que ele se recusa a fazer.
Pois bem, digamos que o proprietário atual do “Palacete” em ruínas fosse aquele coitado desprovido de recursos materiais da hipótese. O que faria, vendo seu investimento travado, sem poder livrar-se do inconveniente octogenário chato que se recusa a morrer? Teria insanidade suficiente para aplicar a solução utilizada pela Prefeitura de Cruzeiro do Sul no “Portal da Mâncio Lima às vésperas da Marcha para Jesus de 2019”. Até o momento não, mas o futuro não tem quem meça… Por isso, espera… Apenas espera.
Não fosse o detalhe “1940” gravado em sua fachada, acredito que teria sido (como tantas foram), demolida sem cerimônia nem constrangimento. Acredito que o registro estampado na fachada é que constrange e incomoda igualmente a todos – responsáveis e irresponsáveis.
Um culpado por tão surpreendente longevidade, apesar do abandono? O Ir. José Stickelmann, que a fez feito às igrejas que ergueu por aqui. Esperar que desmorone sozinha, tijolo a tijolo, aos pedaços feito ingazeira que morre em pé? Espere sentado ali no barranco do Fórum, de onde ainda é possível ver o Rio Juruá, lá longe, mas, que um dia ainda virá desenterrar a Cobra Grande que o cavou…
Antonio Franciney de A. Rocha – Historiador
Contato: https://ac24horas.com/wp-content/uploads/2023/03/JOGOS-MESA-1.jpg.czs@gmail.com
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