A infância da gente é permeada de personagens que ficam na memória para sempre. Cresci em Jundiaí, no interior de São Paulo, por onde dona Maria dos Pacotes perambulava pelas ruas, de roupas escuras, saias bem abaixo dos joelhos, sempre carregando um saco cheio de alguma coisa que ninguém imaginava o que fosse. Sua “função urbana” era por medo nas crianças para que não ficassem brincando na rua: cuidado com a Maria dos Pacotes; olha que a Maria dos Pacotes vai te pegar…
Ela andava muito pelas bandas da rua Prudente. Minha casa devia ficar no seu caminho que, para todos, ligava origem e destino incertos. Vez por outra, mas sempre à tardinha, usava nossa torneira do jardim para se lavar e também lavar as coisas que trazia consigo. Meu segredo bem guardado era já ter visto, por mais de uma vez, que coisas ela levava naquele saco.
Quando a tratavam com deboche, às vezes enxotavam, ela reagia com certa agressividade e gritava coisas que a gente não conseguia entender. Eu não tinha medo da Maria. Acho que nem os meus irmão tinham. Raridade, porque para a maioria da molecada ela era motivo de pavor mesmo. Mantinhamos sim alguma distância daquela mulher que entrava no corredor da garagem para lavar seus badulaques e se assear. Mas era para respeitar sua privacidade.
Magérrima, parecia mais alta do que realmente fosse. Polaca de olhos claros, cabelos lisos, devia ter sido uma moça bonita na juventude. Já tinha uns cinquenta anos nessa época. E não faltavam histórias sobre ela. Que era de uma família de posses. Que tinha ficado louca. Que, que, que.
Fui estudar fora, depois vim morar no Acre, e sempre que passava naquela cidade calhava de eu ver a dona Maria vagando pelas ruas, sem rumo, como sua própria vida me parecia. Até que nunca mais a vi.
Nos jornais da internet descobri que ela já se foi há bom tempo. Viveu até os oitenta e tantos anos. Carlota Judith Barbieri guardava potinhos de vidro no saco que nunca largava. Daqueles que a gente compra com Maionese, palmito ou azeitonas. Talvez fossem de alimentos que carregou para o dia de caminhada.
Numa das notícias sobre ela eu li que guardava um recorte de jornal antigo sob o colchão do abrigo onde permaneceu em seus últimos dias, que revelava um pouco do drama que transformou a moça Carlota no mito Maria dos Pacotes.
Roberto Feres escreve às terças-feiras no ac24horas
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