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A integridade humana 

Por
Daniel Silva

Os gregos tinham um sonho quase impossível: fazer na cidade (pólis) a beleza e a harmonia que viam no céu (cosmos). Kant chegou a imitá-la, raciocinando com os relacionamentos humanos, em busca da construção de uma máxima universal: age de uma forma tal que tua ação possa ser convertida em lei universal. O ponto central da vida dos gregos era a ação coletiva, que representava a vontade da maioria livre, porque apenas os libertos poderiam usar todas as suas faculdades humanas. Os escravos, por exemplo, tinham todos os direitos dos cidadãos, menos o de votar e participar dos debates no ágoras, na praça pública, onde se faziam as deliberações políticas (sobre a pólis). Sem a plena capacidade de ação, portanto, o indivíduo não poderia ser considerado na integralidade de suas condições. Neste sentido, este ensaio tem como objetivo mostrar as condições de contemplação da integralidade humana.


Somos vida (bios, do grego), seres viventes relacionais (zoon, do grego) e espírito (pneuma, do grego) ao mesmo tempo. Corpo físico e extrafísico se interpenetram. O que acontece em um, muitas vezes, de forma simultânea, acontece no outro, como no caso de agressão física que produzimos, enquanto em muitas outras vezes o aparecimento das consequências no aparelho físico só começa a aparecer tempos depois, como nos casos dos cânceres. É preciso cuidar do corpo, para que ele tenha a funcionalidade necessária para a aprendizagem e para a ação. Agir e aprender são duas condicionantes para a existência, tanto dos seres humanos quanto de todos os seres vivos. É preciso garantir a vida física, do corpo, para que a existência possa se dar, manter e desenvolver.


Mas não somos apenas um corpo que anda, aprende e age. O corpo físico é apenas uma ilusão. A materialidade do corpo é apenas uma sensação (obra dos sentidos) do que é, verdadeiramente, imaterial. As partículas elementares de que todos somos feitos não são físicas. São forças, campos energéticos, que produzem toda a ordem e o ilusório caos que percebemos. Metaforicamente, somos um campo energético, compostos de um grande vazio, que é a distância entre o núcleo dos átomos e a parte mais externa da sua eletrosfera. Se fossem retirados todos os espaços vazios dos átomos, o que restaria não caberia na ponta de um alfinete. Somos matéria feita de não matéria, corpo físico e corpo extrafísico ao mesmo tempo. O resultado é uma eletrosfera corporal que se expande à medida que ampliamos nossa capacidade energética, que perfaz o corpo extrafísico. Alguns o chamam de aura.


Enquanto campo, tudo o que fazemos, sentimos e pensamos está refletido nesse campo energético. Se pensamos, sentimos e fazemos o mal, o mal passa a predominar; se o bem, é o bem que predomina. Se pensamos, sentimos e fazemos o bem a maior parte do tempo, a bondade passa a ser estruturante tanto do corpo físico quanto do extrafísico. Como é a mente, a parte não física do cérebro, que a tudo comanda, o bem é uma estrutura mental, assim como o mal, nos casos opostos, de indivíduos que pensam, sentem e fazem o mal constantemente. Como todo o corpo é energia, de fato não há diferença entre as partículas elementares do cérebro e de qualquer parte do corpo. Tudo é mente. Estamos envoltos em um corpo mental, portanto.


Somos também seres relacionais, fazemos parte de grupos e neles expandimos e testamos nossos aprendizados. E, por conjunção, quando nos unimos, ampliamos o campo energético que nos envolve produzindo o que pode ser chamado de psicosfera, que é a reunião da energia de todos os corpos extrafísicos dos indivíduos. Vale dizer, as mentes individuais produzem, não um inconsciente coletivo, como queria Jung, mas um campo, um espaço mental coletivo, onde as mentes individuais interagem. Somos movidos, em última instância, por esse estoque de conhecimentos extrafísicos, que um dia será a definição do que hoje chamamos “cultura”. É por isso que é difícil e demorado mudar a “cultura”: ela é extrafísica.


A antiga concepção grega se acopla com adequação aos conhecimentos mais recentes de diversas áreas do conhecimento científico tradicional e heterodoxo (que é outra forma de dizer “ainda não aceito”). Esse acoplamento pode ser traduzido assim: somos seres triádicos. Temos um corpo físico, que mantém a vida física (bios), que aprende por interações com membros da mesma e de outras espécies (zoon), para aperfeiçoar seu corpo extrafísico, que reveste o espírito (pneuma). Assim, o corpo de carne é revestido por um corpo energético que, por sua vez, reveste o espírito. Quando “morremos”, perdemos o corpo físico, mas o corpo energético continua sua “vida” normalmente porque o espírito, que ele envolve, não morre.


Quando a vida física está em desarmonia (outra maneira de falar de distanciamento), adoece. Mas também adoece quando está em dissonância com seus semelhantes e, mais ainda, quando fere o corpo espiritual. Doenças físicas e extrafísicas são as consequências dessas desarmonias, fatos e fenômenos que apenas agora a ciência é capaz de demonstrar suas relações de causa e efeito. Portanto, reduzir o homem ou qualquer ser vivo a apenas a parte física ou relacional é ver apenas uma parte de sua totalidade. É o que faz a educação atual, em dissonância com os conhecimentos científicos contemporâneos, que reduz o a educação do homem à preparação para o trabalho, como se não existisse o lazer, a família, os relacionamentos afetivos, as dimensões espirituais, o espírito de cidadania, enfim, os fundamentos de uma vida feliz.


Com o foco mudado para a integralidade, percebe-se com facilidade as fragilidades e limitações dos conteúdos curriculares hoje praticados. Em história, por exemplo, conhecem-se com detalhes até a cor das roupas íntimas dos grandes malfeitores da humanidade porque o foco é o mal. Na Revolução Francesa (e em todas as revoluções), o foco é desviado: ao invés do bem que toda revolução traz, focam-se as maldades e colocam-se em pedestais as figuras mais sórdidas. O homem faz o mal, mas faz o bem também. Os ensinos são sempre parciais e superficiais, impossíveis se for trabalhada a integralidade humana.



Daniel Silva é PhD, professor, pesquisador do Instituto Federal do Amazonas (IFAM) e escreve todas às sextas-feiras no ac24horas. 


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