No meio dessa pandemia e com as rotinas todas alteradas pela necessidade do distanciamento social que inibe a proliferação da virose, me vejo, vez por outra, tentando destrinchar os números do coronavírus que são publicados diariamente.
Onde cresceram as contaminações? Qual a taxa de mortalidade? Qual o percentual de casos assintomáticos? Conseguimos o abatimento da curva de internações?
A cada novo boletim, pego o primeiro pedaço de papel que acho pela frente e rabisco meus gráficos para compreender a evolução e distribuição da doença e predizer quando ela atingirá seu pico, qual o tamanho do estrago que produzirá e quando a vida voltará ao normal. Meu amigo Foster Brown me ensinou que esse método foi descrito como BOTEC* na literatura matemática. Até então eu chamava de ‘fazer conta em papel de embrulhar pão’.
De início, com as primeiras informações sobre a doença na China e o desconhecimento a respeito da capacidade dos serviços hospitalares, confesso que minimizei o tamanho do problema. Como engenheiro, tratei até com bastante naturalidade quando mostravam a construção dos hospitais em tempo recorde, num local onde a enorme concentração de pessoas exige estar preparado para tais situações de emergência.
Quando o caos chegou ao norte da Itália, a ficha caiu. Começou a morrer muito mais gente do que era relatado pelo governo chinês. Os hospitais saturaram e teve-se que escolher os que morreriam por falta de condições para o tratamento de todos os enfermos.
O mundo está muito conectado. Pessoas se deslocam o tempo todo entre os países. Milão, Madri, Berlim, Nova Iorque e São Paulo entraram facilmente no caminho do vírus e tiveram que optar entre manterem a economia funcionando ou atacarem a doença com a única medida imediata possível: o isolamento das pessoas.
O vírus chegou ao Brasil num momento especialmente ruim. Exatamente quando o país promove um desmonte dos serviços de proteção social e a economia está estagnada a meia década. Afora os desalentados, que não são poucos, há algumas dezenas de milhões de desempregados e subempregados que não contam com qualquer proteção. As regras adotadas nos últimos anos, facilitando demissões, contratações intermitentes, terceirizações e a ‘pejotização’, por exemplo, se liberaram o ônus sobre a previdência social, colocaram uma legião de brasileiros, praticamente, na informalidade.
Nesse ambiente, onde o almoço de amanhã é pago com o trabalho de hoje por uma parcela significativa da população das grandes cidades onde o vírus se espalha com maior intensidade, dizemos para as pessoas ficarem em casa, reduzimos as possibilidades de trabalho ao estritamente essencial, estabelecemos procedimentos higiênicos que fogem à capacidade econômica da imensa maioria.
Nem mesmo está sendo fácil ao governo federal aplicar as medidas compensatórias que tem tentado. Filas e concentrações desnecessárias de pessoas se formam na porta dos bancos para receber o auxílio modestíssimo que nem consegue chegar efetivamente aos que mais necessitam da proteção do Estado.
Minhas continhas no papel de embrulho têm me preocupado demais. Não gosto de índices e porcentagens. Prefiro os números inteiros que escancaram o tamanho do problema.
Na semana passada o secretário de saúde falou que “o Estado já vem trabalhando com (chegar a) 10% da população afetada pela doença” (link). Se isso efetivamente ocorrer, estamos falando em 90 mil infectados no Acre. Bolsonaro tem declarado que “70% da população vai ser infectada”. Isso dá 150 milhões de brasileiros. Se considerarmos a taxa de mortalidade atual, na casa dos 5%, teremos em breve mais de 4 milhões de mortos para enterrar.
Não há sistema de saúde que atenda simultaneamente alguns milhares de doentes aqui nem alguns milhões por todo o país, por mais que seja reforçado com hospitais de campanha e pessoal voluntário.
As medidas precisam chegar além da classe média que tem garantia de renda e alguma poupança, e que pode trabalhar de casa, tomar cuidados básicos de higiene e proteger seus idosos e crianças. Para quem estudou minimamente a geografia do Brasil (e um pouquinho de geometria), a tal pirâmide social tem uma base repleta de excluídos e são os que mais sofrem os efeitos da pandemia. Ainda são uma multidão de invisíveis.
Roberto Feres escreve às terças feiras no ac24horas.
https://en.m.wikipedia.org/wiki/Back-of-the-envelope_calculation
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