Valterlucio Bessa Campelo
Há algum tempo um professor me disse “todo mundo tem uma filosofia”. Perguntei-lhe: como assim? Ele me explicou: “Pergunte a qualquer pessoa sobre a morte e ela lhe dará a sua filosofia de vida”. Guardei. Outro dia, instado a comentar sobre a aproximação da velhice e da morte, só me ocorreu dizer que o suprassumo da minha filosofia de vida (todos tem uma) é hoje me sentir à vontade para, sempre que desejar, apertar a tecla f* sem medo de f* a mim mesmo. Isso não tem nada de material pois não sou rico, nem de autoritário pois não exerço cargo ou poder algum, é apenas a consciência da minha própria e progressiva desimportância no mundo.
Vez por outra penso na desimportância das pessoas quando observo o cenário político, a briga por posições de mando, o carreirismo notório, as estratégias de defesa e ataque, os saltos triplos morais em busca da luz mais forte, a indisfarçável busca do aplauso.
Em 1647, sob o pseudônimo Lorenzo Gracian, o padre jesuíta espanhol Baltasar Gracian y Morales escreveu “A Arte da Prudência”, uma obra prima do gênero textual em que emitiu 300 aforismos. Em um deles, recomenda: Deixar o Jogo enquanto está ganhando. Segundo Gracian, os melhores jogadores fazem isso. “Uma retirada elegante é tão importante quanto um ataque de estilo. Ponha a salvo seus sucessores, tão logo forem suficientes, quando forem muitos. Uma boa sorte continuada é sempre suspeita. É mais seguro quando a sorte é alternante, o que, além disso, possibilita que se desfrute um prazer agridoce. Quanto maior a sorte, maiores são as chances que se tem de um deslize estragar tudo. Às vezes, a dona da sorte nos recompensa, trocando a curta duração pela intensidade de seus favores. Ela se cansa quando tem de carregar alguém nas costas por muito tempo”.
Lembro disso observando a cena política. Há pessoas que perdem o timing da retirada ou pensam que a ventura é eterna. O orgulho e a arrogância de que são cheios não lhes permitem reconhecer a própria desimportância, mesmo quando ela é crescentemente declarada. Vejo-as em naufrágio político, buscando tábuas de salvação, agarrando-se a velhos discursos, livrando-se como podem de ondas perigosas, disputando com antigos imediatos o lugar de capitão do barco adernado, ou se amarrando ao leme com cordas puídas.
As últimas eleições aposentaram compulsoriamente alguns com a mensagem TCHAU! a outros enviaram um bilhete onde está escrito VOCÊ SERÁ O PRÓXIMO. Seria bom entender que a roda está girando e as velhas práticas, os velhos estilos e o velho mandonismo estão em risco. Aparentemente, há um sopro de mudança no ar.
Sim, não sabemos ainda se a mudança é real, positiva, ou apenas epidérmica, tipo “mudar para continuar do mesmo jeito”, como vaticinou Giuseppe de Lampedusa em seu romance do século XVII, afinal, sob as alterações vemos muito nepotismo e herança eleitoral, muito patrimonialismo. De todo modo, a lição de Gracian permanece válida. É preciso guardar um certo pudor, não se pode manter eternamente encabrestados os partidos e novas lideranças, impondo-lhes pontos de vistas e projetos ao arrepio do interesse da população que julga representar.
Somente a soberba, a arrogância e o apreço doentio ao poder e ao dinheiro explicam determinados comportamentos que vemos no campo político. Essas criaturas, carcomidas pelo tempo e por suas mazelas, algumas sem sequer ter algo a enxergar quando olham para trás, de tão vazias de sentido são suas vidas, querem mais. Não percebem que são páginas viradas, prestes a irem para a história, então teimam, forçam, manobram, pelejam, manejam suas armas imprestáveis como um louco esbofeteia o vento. Não sabem que não são mais importantes.
É neste sentido que vejo as velhas raposas políticas espalhadas no Brasil de cima a baixo. Que mais pretende essa gente retirar da vida pública a não ser a própria decrepitude? Que anseios lhes move o cérebro roto? Eles não percebem que seus nacos de poder são pedaços podres de um edifício em colapso, de um país fadado à crise, de uma sociedade global em transição para um devir totalmente inimaginável. Parecem nem desconfiar que nada que suas vontades estabeleçam será duradouro. Deveriam, se soubessem, se ausentar do palco, procurar seu lugar na plateia e gozar a própria desimportância.
Sei que não é tarefa fácil para um ser que viveu no e do jogo político durante 30, 40, 50, 60 anos trocar a ribalta pela penumbra. É como um velho cantor se dar conta de que sua voz não é a mesma, de que não agrada mais ninguém e se mandar pro sertão antes de ser empurrado para o ostracismo. Poucos conseguem, mas, como recomenda Gracian, é sábio, sem contar que, de fora, o sujeito desimportante ganha a graça da contemplação, que Aristóteles chamou de maior ensaio da filosofia, um lugar especial na esfera mental para ver o jogo da vida.
Valterlucio Bessa Campelo escreve todas as sextas-feiras no ac24horas.
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