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O funcionamento do córtex 

Por
Daniel Silva

Para que o aprendizado seja armazenado no córtex, é necessário muito esforço e persistência. A razão disso é que os aprendizados de longo prazo não são obtidos de forma instantânea, imediata; pelo contrário, são construídos devagar, lentamente, ao longo de muitos dias e talvez anos. Aliás, não são raros os casos em que esses aprendizados careçam de manutenção, reavivamento, renovação. Os aprendizados de longo prazo estruturam e dão sentido àquilo que fazemos hoje, no presente, e nos permitem manusear dados e informações para que possamos lidar com os desafios e problemas do cotidiano. Naturalmente que a cada vez que os utilizamos eles se renovam e são alterados. Neste sentido, este ensaio tem como objetivo apresentar o funcionamento do córtex humano.


Oscar Schmidt, um dos maiores gênios do basquete mundial de todos os tempos, não gostava de basquete. Por diversas vezes afirmou que foi seus amigos que o fizeram gostar de basquete, com a comprometida e avançada idade de 13 anos. Não tinha a mínima intenção de levar a sério o esporte, tanto que jamais esperou que sua profissionalização se realizasse. Mas, e tem sempre esse mas, veio a paixão pelos jogos e essa paixão mudou o seu comportamento. Aos 16, tornou-se jogador. Quando isso aconteceu, o seu desenvolvimento não apenas foi muito grande, foi inacreditável.


O que Oscar tinha que seus colegas, que começaram a treinar muito mais novos do que ele e que se profissionalizaram mais cedo, não tinham? Duas condições parecem explicar a genialidade que se lhe incorporou: primeiro, era um CDF, aluno exemplar, cuja principal característica é ser capaz de ordenar, sistematizar, as coisas para que possam ser aprendidas; segundo, dedicação, muita dedicação.


Traduzindo o que o cérebro do ídolo brasileiro fez para transformá-lo em gênio: primeiro ele procurava entender as lógicas nas coisas, nos passes, nos rebotes, nos lançamentos, nas velocidades da bola e inúmeras outras coisas; e segundo, treinava incansavelmente cada um desses arranjos lógicos, ainda que não soubesse que os cientistas do conhecimento chamam a isso de entendimento.


O entendimento aprendido era materializado e solidificado pelas repetições constantes e exaustivas.


Uma pequena escola do interior do Piauí, na agora famosa cidade de Cocal dos Alves, uma escola pública de ensino fundamental se destacou dentre todas as escolas públicas e privadas do país, desde as mais miseráveis às mais abastadas. O salário dos professores e profissionais é tão ruim quanto ruim pode ser, assim como as condições de trabalho e tudo o mais que se possa imaginar que ajude a evitar que alguém aprenda. Mas, incrivelmente, os alunos daquela escola se tornaram mágicos no domínio da matemática. O que essa escola fez para conseguir isso? Os professores ensinavam a lógica das coisas para os alunos, durante determinado tempo, e logo em seguida exercitavam essa lógica, um pouquinho a cada dia, todas as semanas. Os alunos se apaixonaram por matemática, assim como seus professores o eram, e passaram a exercitar em casa e em outros lugares.


Vejam só. Se os profissionais que lidam com educação nessa singela escola pública tivessem um pouquinho mais de inteligência gerencial, procurariam investigar o que os professores de matemática fizeram, aprenderiam os procedimentos utilizados, dominariam as técnicas empregadas e as aplicariam para reordenar as outras disciplinas. E a escola singela de Cocal dos Alves poderia se transformar na melhor escola pública do país, tão boa quanto as mais caras e abastadas escolas de grife que existem por aí. Cocal dos Alves fez o que a Finlândia faz, o que a Coréia do Sul fez para se transformar em potência mundial, enfim, o que todas as escolas que funcionam no Brasil e no mundo fazem: trabalham o entendimento, um pouco por vez, sem pressa, e em seguida exercitam, periodicamente, inúmeras vezes, até que o aprendizado se consolide.


Não é fácil aprender. Mais ainda: aprender dói. Só não dói se nos apaixonarmos pelo sórdido processo de aprendizagem. Mas, como sói acontecer com quase todos aqueles que experimentaram a dor do aprendizado, as vítimas (os aprendizes) podem se apaixonar pelo algoz (o processo de aprendizagem). Registrar aprendizado no córtex é doloroso e não pode ser feito de forma abrupta. É preciso precisão, fazer correto (para não ser registrado de forma errada), e persistência, constância. Tem escolas no Japão que levam meses ensinando um único assunto, como é o caso do Teorema de Pitágoras. O que essas escolas e sistemas educacionais têm em mente é a aquisição do aprendizado efetivo, consolidado, que não se desfaz jamais, e não apenas o cumprimento burocrático da obrigação de ensinar inúmeros assuntos, como se o hipocampo fosse capaz de absorver e o córtex aceitasse tal carga de uma única vez.


A Base Nacional Curricular Comum do ensino fundamental, por exemplo, parece ter sido elaborada por uma pedra. O cérebro humano é incapaz de aprender tudo o que está previsto ali. Só de objetivos de aprendizagem relativos à área de português são mais de 1.000! É isso mesmo: MAIS DE MIL OBJETIVOS. Acho que todas as bases nacionais curriculares comuns dos países europeus, contando todas as disciplinas, não somam esse número estratosférico. O cérebro da criança funciona de forma diferente do cérebro do adolescente, que é diferente do cérebro do adulto e diferente do cérebro do idoso, apesar da mesma sistemática.


Ninguém manda uma criança de três anos de idade correr uma maratona em menos de uma hora, da mesma forma que não se deve empanturrar o cérebro humano com tantas informações. E ainda mais informações desordenadas, desconexas, assistemáticas. Tanto o hipocampo e o sistema límbico quanto o córtex e o cerebelo, destinos finais dos aprendizados, têm suas limitações e suas exigências. Não é por que são plásticos que eles vão nos obedecer. Eles são plásticos se os obedecermos. E para que possamos obedecê-los, é preciso que o conheçamos.




 


Daniel Silva é PhD, professor e pesquisador do Instituto Federal do Amazonas (IFAM) e escreve todas as sextas-feiras no ac24horas. 


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