Estamos diante de mais um capítulo do processo de criação da Lei de Abuso de Autoridade, o Projeto de Lei 7596/17. Referido projeto estava sem movimentação há dois anos na Câmara dos Deputados, no aguardo de formação de Comissão Especial, todavia, na data de 14 de agosto de 2019, após votação de requerimento de urgência, foi aprovado em Plenário, sem o debate democrático necessário que poderia permitir o aperfeiçoamento do texto. A aprovação do Projeto se deu em votação simbólica, e, assim, não se mostrou possível a retirada de pontos importantes e que atingem a atividade de julgar.
O projeto foi convertido na Lei Ordinária nº 13.869/19, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro com vetos a 36 dos 108 dispositivos aprovados pelo Congresso. Os 36 vetos estão distribuídos em 19 artigos que interfeririam na independência de atuação de magistrados, membros do Ministério Público e autoridades policiais, a manutenção dos vetos minimiza os prejuízos que a Lei causaria ao trabalho independente desses agentes públicos. A derrubada dos vetos resultaria no enfraquecimento das autoridades judiciais dedicadas ao combate à corrupção e à defesa dos valores fundamentais, com grave violação à independência do Poder Judiciário do Ministério Público e a atividade Policial.
Não é novidade para ninguém que a Lei atinge diretamente o exercício da atividade jurisdicional, ferindo a independência judicial, e por esse motivo os vetos precisam ser mantidos, de modo não cause insegurança jurídica e inviabilize totalmente o trabalho de Juízes, Promotores, Procuradores e Policiais. Ocorre que um dispositivo dessa lei, em especial, atinge diretamente a imprensa e dificulta o trabalho de quem tem por missão informar ao público.
O artigo 14 da lei 13869/19, que foi vetado pelo presidente da república, criminaliza a atividade típica de jornalistas que é registrar através de imagens e de sons, interpretar e organizar informações e notícias a serem difundidas. A imprensa tem a missão civilizatória de informar ao público, processar a informação; priorizar a atualidade da notícia; divulgar notícias com objetividade; honrar o compromisso ético com o interesse público; respeitar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.
A nova Lei de Abuso de Autoridade no seu Art. 14, que foi vetado pelo Presidente da República busca criminalizar essa conduta objetiva típica de divulgação de informações pela imprensa. É certo que na sua parte final o artigo exige dolo específico de ter intenção de expor a pessoa a vexame ou execração pública, entretanto, essa consequência, em razão da notícia divulgada, está fora do controle da imprensa.
Inserir como elemento do tipo penal o “o intuito de expor a pessoa a vexame ou execração pública”, gera insegurança jurídica e limita o trabalho da imprensa por se tratar de tipo penal aberto e que comporta interpretação extensiva. Além disso, é praticamente impossível o controle absoluto sobre a captação de imagens de investigados e presos, notadamente quando são conduzidos às delegacias, aos fóruns ou no momento da prisão em via pública e sua divulgação ao público por parte de particulares ou mesma da imprensa, resultaria em responsabilidade criminal e recairia sobre os agentes públicos.
Além disso, a captação da imagem do preso ou do investigado poderá servir no caso concreto ao interesse da própria persecução criminal, mediante captação de sistema de vigilância ou outro meio idôneo.
A popularização da internet e a multiplicação de aparelhos capazes de captar imagens e sons disponíveis nas mãos de qualquer cidadão, e da mesma forma a multiplicação de canais de comunicação na rede mundial de computadores (blogs, jornais eletrônicos, youtubers, grupos de whatsapp) especializados nos mais diversos assuntos, com o consequente aumento da circulação de informações na sociedade onde as notícias e imagens são divulgadas em tempo real, sem qualquer tratamento prévio, nos leva a concluir que a captação de imagens de investigados e presos e sua divulgação ao público por parte de particulares ou mesma da imprensa, foge ao controle dos agentes de estado, e que por esses motivos a responsabilidade criminal não poderia recair sobre os agentes públicos.
É verdade que a liberdade de informação e os direitos da personalidade, como a honra e a imagem, são garantias que têm o mesmo status na Constituição. São cláusulas pétreas previstas na Lei Maior e prerrogativas fundamentais dos cidadãos. Por outro lado, o acesso à informação e sua livre circulação é imprescindível para a saúde das democracias. No Brasil a Lei 12.965/2014 que instituiu o Marco Civil da Internet estabeleceu no seu Art. 7º que o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania. A Organização das Nações Unidas (ONU) já declarou que o acesso à internet é um direito humano. A ONU considera o corte ao acesso à internet, independentemente da justificativa e incluindo violação de direitos de propriedade intelectuais como motivo, “uma violação artigo 19, parágrafo 3 º, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos”. Assim, o acesso à internet seria um direito humano fundamental e que a publicação de opiniões na rede mundial representa uma forma de liberdade de expressão.
O Superior Tribunal de Justiça – STJ já decidiu que a liberdade de informação e de manifestação do pensamento não constitui direitos absolutos, são relativizados quando colidirem com o direito à proteção da honra e da imagem dos indivíduos, bem como ofenderem o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (Resp 783.139). Desse modo, o abuso no exercício do direito de informação, que violar a intimidade do indivíduo, gera direito à indenização e responsabilização na esfera criminal por crime contra honra. O abuso no exercício do direito à informação e expressão já é punido por lei, não havendo necessidade de um novo artigo de lei que cause antinomias e instabilidade no sistema. Derrubar o veto ao art. 14 da lei de abuso de autoridade poderá afetar a liberdade de imprensa. Sabe-se que o conflito “liberdade de imprensa x direito de imagem” é um dos mais sensíveis na esfera constitucional, não havendo consensos jurisprudenciais acerca da prevalência de um ou de outro: o que predomina é a ponderação casuística, sempre sujeito a instâncias revisoras que podem decidir exatamente o contrário do que decidido anteriormente, num sistema jurídico-constitucional que busca dar espaço a um direito sem tolher totalmente o outro.
No processo de produção de notícias, não é possível exigir que a mídia só divulgue fatos após ter certeza plena de sua veracidade. O sistema Legislativo ou Judicial que impor tal exigência à imprensa estaria inviabilizando o trabalho desses profissionais, é sabido ainda que o processo de divulgação de informações satisfaz verdadeiro interesse público, devendo ser célere e eficaz, enquanto a notícia é quente e interessa à sociedade. É dever da imprensa exercer atividade investigativa, buscar fontes confiáveis, ouvir as partes, e certificar-se da veracidade do que divulgará. Mas, nem sempre o trabalho jornalístico pode prever a repercussão da notícia junto ao público. Como provar que o jornalista ou a autoridade teve a intenção, mediante a divulgação da foto ou filmagem (que consiste exatamente, o seu trabalho), de gerar “vexame ou execração pública?”.
Danniel Gustavo Bomfim é Presidente da Associação de Magistrados do Acre e Juiz de Direito – Mestre em Direito Constitucional pela UnB
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