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Longevidade

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Topei com minha amiga Iris Pastor enquanto tentávamos descobrir um maço de salsinha na gôndola do supermercado e ela dizia da quantidade de ipês amarelos que ainda existem em Rio Branco, todos floridos nesta época do ano. Aqui no Acre, a árvore símbolo do Brasil é realmente magnífica, com seu porte enorme, principalmente quando perde todas as folhas que dão lugar à enorme copa amarela.


Bem ao contrário daquelas árvores retorcidas do Cerrado e do Sul que só mostram sua beleza por alguns dias, mas que não compensam a sujeira anterior de folhas mortas e posterior da sementeira voando e entupindo esgotos e calhas.

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Até o verão passado havia um desses pés de ipê gigantescos no terreno ao lado de casa, onde morou tia Clarisse Fecury, bem no centro da cidade. Foi tombada, literalmente, para a construção de um prédio comercial, em homenagem ao progresso e à urbanização.


Era com a vista daquele quintal, onde havia também algumas touceiras de açaí, pés de sapoti, graviola, cupuaçu, carambola e pitanga que eu costumava ouvir ela contar de uma Rio Branco dos tempos das catraias para atravessar o rio, das brincadeiras de carnaval na Tentamen, da revolução educacional promovida pela professora Maria Angélica de Castro, da família e tantas outras histórias.


Entre os quintais das nossas casas havia um portão que toda manhã ela cruzava para me lembrar de que o café já estava pronto do outro lado do muro. Se ainda estivesse entre nós, agora ela teria exatos cem anos. Viveu, lúcida, mais de noventa.


Aprendi com ela que ficar velho não é uma coisa fácil. Se por um lado a longevidade com saúde é uma benção, também é o que nos incumbe de apagar a luz antes de sair. Um a um, os amigos se tornam personagens das histórias que nem sempre haverá quem esteja disposto a ouvir.


Quanto mais rica a vida nos tiver sido em boas lembranças e realizações, mais perversa é a perspectiva de que isso tudo seja levado também para o mausoléu no São João Batista.


Das conversas com a Clarisse eu pensava em como perenizar essa memória que, no caso dela, interessava à própria história da cidade e até do Acre. Por ela passaram alunos ilustres, como o deputado Enéas Carneiro, a novelista Glória Peres e o jornalista Armando Nogueira. É lembrada pelos anos de dedicação ao Grupo Escolar 24 de Janeiro.


Memória não é algo tão fácil de deixar registrado. Precisa ser desbravada por quem sabe ouvir, naquelas prosas onde uma história puxa a outra. Tem entrelinhas de sucessos, fracassos, projetos que ficaram pela metade, idéias que ficaram para depois. A tecnologia ainda não inventou uma máquina que bata um bom papo.


Cheguei uma vez a sugerir um projeto que patrocinasse bolsas para estudantes de História dispostos a registrar uma hora semanal de conversa fiada e organizar uma “audioteca”. Acho que muitos filhos, netos e sobrinhos bancariam com prazer poderem guardar também a memória de um antepassado.


Talvez a perspectiva cada vez maior da longevidade me assuste mais que à maioria das pessoas. Ao mesmo tempo que a vida a cada geração dura mais, também a obsolescência se dá cada dia mais cedo. A necessidade de se reinventar o tempo todo e a resiliência imprescindível no mundo do excesso de informação antecipam a hora de pendurar as chuteiras, mesmo que a saúde física determine o contrário.


Me assusta, depois de ter vivido tanto, e espero viver muito, a perspectiva de desaparecer por completo, como os ipês da cidade.

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Roberto Feres escreve às terças-feiras no ac24horas.


 


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