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Trabalho infantil

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Não me ative exatamente ao que o presidente falou ou quis dizer sobre crianças trabalharem e que gerou tanto barulho dos seus contrários e a favor, na semana passada. Choveu memes, teorias, propaganda. O tema é sério e merece menos controvérsia e mais ponderação.


Proteger a infância, na minha opinião, não é motivo para demonizar o trabalho. Educar um filho para sobreviver no mundo dos adultos implica em desenvolver nele valores e habilidades onde o trabalho tem uma grande importância.

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Há uma premissa nessa discussão: a enorme desigualdade que persiste no país expõe sim crianças a situações inadequadas e perigosas, onde o que produzem se sobrepõe ao processo pedagógico e lúdico, às vezes totalmente ignorados. Isso é inadmissível.


Geralmente, quando ouvimos a defesa feita por testemunho de pessoas que trabalharam na infância, não são histórias de quem perdeu essa fase importante da vida, mas dos que devem às tais experiências o valor que dão hoje às coisas que fazem e têm.


Da minha parte, nunca tive que trabalhar, oficialmente, quando era criança ou adolescente. Meu primeiro emprego foi aos 23 anos quando me formei na engenharia. Papai deixava muito claro que minha profissão era de estudante. Nisso que tinha que me dedicar e ser o melhor possível. Mas mamãe, sempre que encontrava uma oportunidade, promovia atividades misturando diversão e produção de algo que rendesse algumas moedas. Foi assim, por exemplo, que, com meus irmãos e alguns amigos, exterminamos as tiriricas e os tatu-bolinhas do jardim a um centavo cada batatinha ou caramujo. Ajudar na casa não dava direito a remuneração, mas engraxar os sapatos do vô Sylvio ou buscar os jornais na banca da esquina rendia uns trocos para o sorvete.


Na escola também era muito valorizado desenvolver habilidades. Onde fiz da 6ª à 8ª séries (12 aos 14 anos) tinha uma ‘oficina de artes industriais’ que os meninos aprendiam a lidar com ferramentas de marcenaria, tornearia, gráfica, cerâmica, fotografia e eletricidade. Fazíamos desde enrolar a bobina de um motorzinho, até pinturas em silkscreen, jarros de feldspato e ferramentas de aço. Revelei minhas próprias fotos em preto e branco, travei serrote, amolei formão e tesouras. Foi no ensino médio que me formei Topógrafo, estudando numa escola técnica.


Transformar essas habilidades em dinheiro, eventualmente, foi um aprendizado sobre a dimensão e importância do trabalho e do empreendedorismo, que carrego na vida adulta.


Pintei muitas camisetas e fiz bijuterias de latão e miçangas que minhas irmãs vendiam para as colegas de classe. Assim que fui aprendendo a fazer o que gostava e a gostar do que fazia.


Todas essas coisas não têm nada a ver com carregar peso excessivo, fazer movimentos que prejudicam o crescimento físico ou disputar espaço em ambientes inóspitos ou degradantes. Nada parecido com sobreviver no mundo dos adultos ou ter a obrigação de levar dinheiro para casa. Mas não é simples reconhecer onde termina o trabalho por divertimento, que forma o caráter, daquele por obrigação, que subtrai a infância.


Cheguei certa vez em Cruzeiro do Sul e, à tardinha, fui fazer o lanche na praça próxima ao hotel e aproveitei para procurar por algum engraxate que limpasse meus sapatos. No aeroporto, na véspera, e durante o dia, pelo centro da cidade, alguns já haviam me abordado, mas naquela hora não aparecia nenhum.


Após dois churrasquinhos e um sorvete apareceu um rapazinho de não mais que oito ou nove anos, com sua caixinha nos ombros, e acertamos o serviço. Sentei no banco, ele na caixinha e, enquanto ele intercalava cera, escova e flanela eu puxei conversa sobre a dificuldade de encontrar um engraxate naquela hora.


Muito compenetrado no que fazia, ele me explicou que seus concorrentes não podiam estar ali àquela hora porque os pais perderiam o bolsa-família se fossem pegos. Só trabalhavam onde não havia conselheiro tutelar por perto. Já ele não tinha esse problema porque os pais não dependiam do benefício. Foi quando me caiu a ficha de que, naquele momento, eu contribuía com a exploração nociva de trabalho infantil.


Nesse mundo de lacração e bipolaridade, às vezes é bom pararmos com os discursos fáceis e assumirmos que os dois lados podem ter sua dose de razão. Como as minhas, são tantas as experiências boas onde a valorização do trabalho, enquanto criança, forjaram caráter, deram disciplina, descobriram vocações e produziram adultos felizes com o que fazem para ganhar a vida.


O que precisamos é saber reconhecer e reprimir quando há a exploração do trabalho de uma criança, seja pela obrigação do ganho, pela incompatibilidade física ou até a submetendo a perigos e à prostituição. Precisamos reconhecer e ter os instrumentos para acolher crianças e suas famílias quando a pobreza e a necessidade forem as determinantes que prejudicam a formação dos nossos futuros adultos.



Roberto Feres escreve às terças-feiras no ac24Horas.

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