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Ave rara do sindicato acreano

Por
João Correia

O sindicalismo é uma das boas invenções do capitalismo. Ele só é pleno com o trabalho livre, completamente livre. A liberdade é de tal forma exigida que o trabalhador precisa estar livre até da propriedade dos meios e de instrumentos de trabalho – dos meios de produção, em linguagem marxista – para compor a criação do mercado mais importante de todos: o mercado de trabalho urbano. E o trabalhador livre foi o máximo que a humanidade conquistou na escala civilizatória.


Também é fato inconteste de que o capitalismo não se enfeita com o mínimo de escrúpulos morais ou humanistas quando se trata de dar provimento ao seu processo de acumulação e de expansão. Assim, ele reinventou a escravidão; usou-a em sua conveniência e extinguiu-a quando ela pôs-se a atrapalhá-lo. Nos EUA fez até uma guerra civil, a mais atroz já vista nas Américas.


No Brasil, o sistema agiu no mesmíssimo diapasão. Inventou a escravidão e suprimiu-a quando tornou-se inservível às novas exigências, séculos depois.


Foi nesse ritmo contraditório dos interesses de acumulação e de expansão dos ciclos dos negócios que foram criadas a história e a geografia do Acre. Num intervalo de trinta e cinco anos, foi abolida a escravidão no Brasil e foi deslocado um mar de pessoas do nordeste do Brasil – deixando a aridez das secas- para a Amazônia, ávido por acessar as riquezas da borracha. A ironia é que – de par com a abolição da escravatura e criação de um mercado de trabalho livre no Sudeste – foi instituído na Amazônia um sistema de produção mais aparentado com critérios de servidão; em verdade, um cruzado entre a escravidão e a liberdade, mediado pela cadeia do aviamento: o empreendimento seringalista. Enquanto isso, no capitalismo de ponta, Ford implantava a modernidade revolucionária e vigorosa das linhas de montagem fabris.


Para se afastar bizantinas discussões condenatórias moralistas ou ideológicas( de se poderia ou não ter sido diferente ), tem-se
que o sistema de aviamento foi o mais eficiente aplicado no caso. Vigeu por praticamente 100 anos, sendo golpeado, já enfraquecido, somente com o advento do Governo Dantas.


O desenho das propriedades seringalistas obedecia mais à quantidade de seringueiras existentes na mata, à sua ocorrência, de que à área propriamente dita por ela ocupada, ou seja, não era incomum seringais menores em área serem mais produtivos e valiosos de que seringais maiores apenas por terem maior ocorrência de seringueiras. O mesmo sucedia, por conseguinte, com os trabalhadores e famílias de seringueiros.


A disposição das unidades produtivas nos seringais obedeceu ao natural e irremediável critério do isolamento, mortal a qualquer processo associativo. Em casos extremos, seringueiros passavam o ano inteiro sem contato algum com seus semelhantes. Algo inédito na evolução da humanidade, situação mais primitiva de que a do tribalismo. Talvez essa cruel circunstância humana auxilie na explicação da inexistência de conflitos importantes entre seringueiros e patrões, incomum em quaisquer relações de produção humanas conhecidas.


Bom, para o propósito aqui definido – focar o sindicalismo rural acreano – importa constatar que a imensa ocorrência de seringueiras definiram o mapa do Acre e apresentaram das maiores ( senão a maior ) ocupações demográficas rurais do grande vazio amazônico. Não puderam ser ricas, pelas razões apontadas, as experiências associativas e sindicais. À época do Governo Dantas, o Acre distribuía-se em apenas sete municípios: Cruzeiro do Sul, Tarauacá, Feijó, Sena Madureira, Rio Branco, Xapuri e Brasiléia. Em todos eles, era expressiva a população rural de seringueiros das gerações remanescentes da primeira leva, renovada pelas tropas do exército dos soldados da borracha durante a Segunda Guerra Mundial. Com a insolvência da maioria dos seringais, muitas famílias exercitaram, também, por sobrevivência, uma agricultura de subsistência, mesmo que rudimentar. Era evidente, à vista disso, de que a retirada das famílias das áreas há muito ocupadas geraria candentes problemas à implantação do mercado de terras.


Foi este ambiente tenso que João Maia da Silva Filho, Delegado da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura – CONTAG – encontrou por essas plagas. As ações empreendidas sob seu comando tornaram-se referências históricas de época.


Em poucos meses, fundaram-se sindicatos de trabalhadores rurais em todos os sete municípios e um novo ator politico passou a fazer parte relevante nos conflitos agrários do Acre; suas molduras restaram substancialmente alteradas.


A luta principal dos sindicatos e da CONTAG consistiu na transformação dos antigos ocupantes dos seringais em posseiros com
direito de almejar a propriedade da terra. O confronto, naturalmente contido na esfera política, derramou-se para a esfera jurídica onde os embates esquadrinhavam o principal código deixado na área pela ditadura militar: o Estatuto da Terra; aliás um diploma bastante avançado no que tange a direitos de trabalhadores rurais. Algumas personagens ficaram notórias nessa esgrima: dentre muitas, os advogados João Tezza, João Branco e Luís Saraiva pelos chamados “ paulistas “ e Pedro Marques e Walter Limão Montilha, pelos sindicatos, reforçados, posteriormente, pela participação de Arquelau Melo. Saliente-se que varias dessas personagens seguem vivas e ativas nos dias que correm.


Por outro turno, os procedimentos de organização e associação de ocupantes e produtores rurais foi finalmente inaugurada pelos sindicatos nos municípios. Aos poucos foi se criando uma mentalidade de busca de propriedade, de desejo de acesso específico sobre a terra, impensáveis por trabalhadores cativos da empresa seringalista.


É uma lástima que os fatos descritos tenham se perdido nas brumas do tempo, sem que mensurações estatísticas singulares tenham sido feitas sobre a evolução material e patrimonial das famílias protagonistas dessas lutas. Infelizmente, não é um segredo de polichinelo.



João Correia escreve às quintas-feiras  no ac24horas.


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