Valterlucio B. Campelo
A vitória no plano nacional de um projeto liberal em contraposição ao itinerário estatizante vigente há décadas implica uma série de transformações nas estruturas de governo e na própria governança, entendida como processo de modelar e operar o aparelho estatal em busca de determinados objetivos e metas. Presentemente, tesouras administrativas e financeiras são usadas à larga sob a presunção de busca da eficiência e do necessário equilíbrio fiscal. Que seja, afinal, há evidências de que muitos excessos foram praticados exorbitando a capacidade de financiamento público. É o que se convencionou chamar de “enxugamento da máquina”, que corresponde, em tese, ao processo de acomodação dos meios à disponibilidade de recursos e ao alcance dos fins. Para alguns, algo simples e raso. Para outros, nem tanto.
É clichê, mas nem por isso desimportante, dizer que o mundo mudou e, com ele, as estruturas de gestão pública. Há mesmo um processo contínuo de mudança. Com a superação do modelo patrimonialista dominante desde o império até o primeiro terço do século XX, passando pelo modelo burocrático inaugurado pelo Estado liberal até o gerencialismo emprestado do empreendedorismo, há uma busca no sentido de maior entrega de resultados ao financiador que em última instância é o cidadão pagador de impostos. Tal perspectiva parece ainda mais clara nos dias de hoje e deve ser considerada especialmente agora, quando se inicia novo governo.
No Acre, paralelamente aos esforços de equilíbrio fiscal, anuncia-se uma estratégia de resgate do “tempo perdido” com a superação do projeto de base ecológica conhecido pelo slogan “Florestania” e a implantação, embora tardia, do modelo de base agropecuária que levou outras regiões a elevados patamares de desenvolvimento – Mato Grosso, Rondônia, Oeste baiano, Sul do Piauí por exemplo. Se quem acorda tarde precisa ter pressa, é hora do Acre rapidamente delinear e promover um processo de atração do capital excedente em outros centros, o que somente será possível a partir da oferta de vantagens comparativas seguras, infraestrutura adequada e apoio institucional. Vislumbra-se assim um cenário de maior dinamismo econômico e correspondente melhoria da qualidade de vida das pessoas, com geração de emprego e modernização do agro acreano.
Há, porém, que se perguntar o que se pretende fazer com a pequena produção ou, como se convencionou chamar, a agricultura de base familiar. Que papel virá a desempenhar este setor da economia no estado do Acre? Qual a sua inserção no processo de transformação anunciado pelo governo? Que apoio institucional podem esperar os produtores detentores de áreas inferiores a 100 ha, que segundo o IBGE representam cerca de 80% do total de estabelecimentos rurais no Acre? Note-se que se considerarmos as restrições ambientais e levarmos este limite a 200 hectares, quase 95% do total de proprietários de terra que por sua natureza, extensão, localização etc., não estariam plenamente inseridos na nova dimensão do desenvolvimento em implantação.
Embora desejável e justificada face aos resultados verificados até aqui pela política anterior, a nova orientação no sentido de uma perspectiva de desenvolvimento centrada no agronegócio não pode significar abandono da agricultura familiar. Se é razoável indicar o erro histórico de impor freios excessivos ao setor do agronegócio, também é justo, creiam, reivindicar maior e mais qualificada atenção ao pequeno produtor, sob pena de empobrecimento e esvaziamento precoce e acelerado do campo com as consequências conhecidas nos centros urbanos.
Trata-se, portanto, de remontar estruturas necessárias a um desenvolvimento equilibrado, que tenha um olhar abrangente, que identifique a potencialidade da agricultura familiar como geradora de emprego e renda, fornecedora principal da comida que vai à mesa do cidadão comum, de matérias-primas para os setores urbano-industriais e, além disso, como contenção do fluxo rural-urbano. Não se pode, por qualquer motivo, pleitear um desenvolvimento agropecuário manco, mesmo porque a agropecuária exportadora, centrada basicamente nos complexos da carne, café, laranja e soja e a agricultura familiar são complementares e não concorrentes, de modo que um plano global precisa integrar esta perspectiva.
No plano das reformas, boa medida tomou o governo do Acre ao fundir as secretarias de agricultura e pecuária – SEAP e de agricultura e produção familiar – SEAPROF. O organismo resultante (Secretaria de Estado de Produção e Agronegócio – SEPA), pretende unificar a gestão do setor e estabelecer maior harmonia e complementaridade às ações desenvolvidas.
Neste contexto, emerge a Assistência Técnica e Extensão Rural – ATER, referida como prioritária em todos os discursos e papers produzidos no setor agrário, mas quase sempre esquecida no momento seguinte. O órgão público de prestação de ATER, a EMATER-AC, outrora ativa e pujante, equipada, tecnicamente qualificada e moderna, capilarizada em todo o território acreano foi, aos poucos, minguando, perdendo seus quadros e envelhecendo sob o boicote nem sempre explícito de sucessivas administrações. Dado eloquente é que o último concurso realizado pela empresa data de 1988! Em verdade, o olhar perverso dirigido à EMATER pretende extingui-la pela aposentadoria ou morte de todos os seus servidores.
Obviamente, assim como todos os outros setores da administração pública, a ATER não está a salvo de críticas e avaliações. Neste sentido, observemos as mais frequentes: A ATER é demasiadamente cara; a EMATER perdeu legitimidade pelo uso político.
Uma avaliação (houve alguma?) que indique uma suposta ineficiência econômica (carestia) da ATER é achismo ou concentrou-se apenas nos esforços (despesas) realizados, sem a contabilidade dos resultados, estes quase sempre ignorados ou apropriados por outros setores. Além disso, o modelo de atuação clássico está em franca transformação. A tradicional visita técnica individual ao produtor tende a ser substituída mediante a revolução da tecnologia e informação, por mecanismos muito mais baratos e imediatos. Por outro lado, a experiência recente mais elaborada sugere um tipo de gestão orientada para resultados, a partir de monitoramento e controle permanentes, utilização de indicadores e, consequentemente, escolhas mais eficientes.
Uma suposta “perda de legitimidade” da instituição EMATER – AC, por mediar politicamente a relação dos sucessivos governos com o beneficiário de seus serviços, é uma questão de gestão estratégica que depende muito mais de fatores e atores externos e não exatamente do arbítrio dos técnicos diretamente envolvidos, vale dizer, mude-se o prática política, elimine-se o nepotismo e o aparelhamento, preserve-se a competência na gestão e seguramente a competência técnica dará as respostas necessárias.
Dentre todos os profissionais não há qualquer que supere o extensionista rural em termos de vocação para o contato direto com o campo e com as pessoas que nele vivem. É da própria natureza de sua formação, seja de nível médio ou de nível superior, confrontar seu arsenal teórico com o percurso do processo produtivo desde a decisão de plantar ou criar até a realização da produção no mercado. Ocorre que durante anos este profissional foi submetido à ausência ou precariedade de meios e condições de trabalho, o que, por óbvio, determina baixo rendimento, frustração, desencanto e apatia. Além disso, pela submissão institucional a organizações supervenientes, no caso a SEATER e, posteriormente, a SEAPROF, as ações e resultados da ATER foram ofuscadas e em muitos casos usurpadas.
Observe-se, por outro lado, que há uma nova ATER sendo construída no Brasil, a partir de um arcabouço legal definido e da participação incisiva das instituições públicas. A lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006, estabeleceu as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais; a lei nº 12.188, de 11 de janeiro de 2010 instituiu a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária – PNATER e o Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na Agricultura Familiar e na Reforma Agrária PRONATER; a lei nº 12.897, de 18 de dezembro de 2013 autorizou o Poder Executivo Federal e o decreto nº 8.252, de 26 de maio de 2014 instituiu o serviço social autônomo denominado Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural – ANATER. São estruturas legais e institucionais recentes que sustentam a perspectiva de promoção do serviço de ATER, inclusive com a destinação de recursos financeiros.
Creio por tudo isto que o momento é de resgate e de impulso vigoroso da ATER pública como imprescindível à promoção da modernização da agricultura de base familiar. Que haja um processo de atualização metodológica, de aparelhamento tecnológico da EMATER – AC e uma gestão orientada para resultados mensuráveis e claramente definidos. Que novos técnicos sejam contratados em número, perfil e lotação estabelecidos conforme um plano de ação de longo prazo, que atenda aos objetivos estratégicos do governo que pretende dedicar prioridade ao agro como motor do desenvolvimento, e que a ATER seja honestamente avaliada pelos critérios de eficiência, eficácia e efetividade em relação ao desenvolvimento rural e, também, por sua multifuncionalidade, dado que sendo muitas vezes última fronteira da presença do Estado em localidades interioranas, cumpre atribuições diversas de sua missão principal.
Valterlucio B. Campelo é Engº Agrº, Mestre em Economia Rural.
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