O brilhante pessimista François duc de la Rochefoucauld ensinou numa de suas frases mais famosas que “ a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude “. Desencantado com o gênero humano, o aristocrata francês iluminou bastante o debate filosófico posterior feito sobre a natureza do humanismo.
O qualificativo “humano” passou a ser crescentemente identificado pelo senso comum com humanitário, designando as virtudes e afastando-o dos vícios que acompanham o artifício humano. Diz-se de alguém: fulano de tal é “humano”; quer se dizer que fulano de tal é generoso, fraternal, de bom caráter, bondoso, grato etc e deixa-se submerso o fato de que ele pode ser o inverso disso.
Se se focar nos vícios humanos, entretanto, ver-se-ão coisas bem feias, lados bem sombrios. Surgirão criaturas deformadas, más, cruéis, psicopaticamente ególatras, perversas, de mau caráter, ingratas etc, capazes das mais pavorosas vilanias e a máxima de Thomas Hobbes ficará ao alcance do olhar : “o homem é o lobo do homem”.
Por isso a hipocrisia é tão comum na relação entre as pessoas e instituições; é que, de fato, o homem é o mais desumano dos animais na natureza.
Tome-se, como exemplo, um dos crimes recorrentes na trajetória da humanidade: o filhicídio, que é o assassinato dos filhos pelos pais.
Nem sabe-se se o Deus Judaico Cristão tem a primazia. Mas o fato é que em Gênesis, o primeiro livro da Torá, Deus testa a fé de Abraão exigindo dele o sacrifício em holocausto de seu amado filho, Isaac. E Deus escolheu justamente uma forma de crime de difícil explicação, expiação e aceitação. O Senhor escolheu o filhicídio. Abraão seguiu à risca as exigências de Deus e Isaac foi salvo por um anjo na undécima fração de segundo.
Nas peças de Eurípedes, o filhicídio aparece bem radical em Medéia e no sacrifício de Ifigênia por seu pai, Agamemnon, Rei de Micenas e comandante geral do exército heleno no cerco a Tróia.
Em algum lugar dos Tratados de Poesia e Retórica, de Aristóteles, o pensador explica, mui corretamente, de que todas as ações humanas descritas nas obras literárias e artísticas da Grécia imitavam fatos acontecidos na vida real, cotidiana. É a arte que imita a vida, portanto, e não o inverso como propõem alguns artistas contemporâneos. Dessa forma, os aspectos mais trágicos de Medéia, por exemplo, baseavam-se em antigas tradições orais que atravessaram o tempo, mas que, efetivamente, haviam ocorrido.
Em tempos mais recentes, os casos são mais concretos, documentáveis, são tangíveis e saem das brumas da mitologia e da metafísica. Um caso bastante espantoso de filhicídio foi a morte dos seis filhos levada a cabo por Joseph Goebbels e Magda Goebbels no bunker que partilhavam com Hittler, em 1945, antes de se suicidarem. Avaliaram que não havia vida digna de ser vivida fora das regras do nazismo, mesmo que agonizante.
Será que isso acontece com os cordiais brasileiros? Muito frequentemente, por lástima. Basta se focar em abortos e em mães que acabam em atos desesperados estrangulando seus filhos, não raro com a cumplicidade de pais biológicos ou não; o filhicídio impregna bem mais a cultura popular do que comumente se imagina.
E, por falar em pais, dois casos bem rumorosos de filhicídio envolvem justamente dois pais biológicos e duas madrastas: o caso Nardoni ( em que foi assassinada a menina Isabele ), em São Paulo, e o caso Boldrini ( em que foi morto o menino Bernardo Boldrini ), no Rio Grande do Sul. Como os assassinos são de classe média, a imprensa ofereceu nauseante cobertura. Mas, desgraçadamente, a frequência do filhicídio no Brasil é bem maior do que revelam as manchetes dos jornais. O filhicídio é caracterizado por assassinatos brutais, dolosos, cuidadosamente premeditados e ceifam a vida física das vítimas, normalmente indefesas; tem sido cada vez menos raro, em todos os lugares.
Por esses dias, mesmo, dois casos foram bastante citados pela imprensa e redes sociais: o caso de um recém nascido assassinado pelo pai por estar-lhe perturbando o sono com seu choro e outro, aqui no Acre, que acabou se tornando acusação a um policial federal de ter assassinado um filho indesejado, pelas bandas de Cruzeiro do Sul.
Mudando-se da esfera da polícia para a esfera da política (ambos os termos têm raízes comuns, embora desempenhem funções opostas, mas imprescindíveis, na democracia), será que pode vir a existir o filhicídio político? Deixe-se essa reflexão para o próximo artigo.
João Correia é professor universitário e escreve no ac24horas todas as quintas-feiras.