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Comemorar a tortura, o ódio, a escuridão e o nosso passado de absurdos gloriosos?!

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Por Nazareth Araújo*


O que será que estaremos comemorando daqui a pouco?

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Meu Deus! Além de dar declarações estapafúrdias, por completo, no Chile, elogiando ruas de sangue e desclassificando os brasileiros, agora teremos “comemorações” da ditadura militar brasileira (1964-1985)?!


Francamente!


Isto está beirando a insanidade.


Podem falar o que quiserem de mim. Não dá para ficar quieta diante disso.


Acho que nunca escrevi sobre isso. Mas hoje as palavras não me saem pela boca. Elas me saem do coração, chegam à mão, movimentam a caneta e prosseguem.


Tão duro visitar, por escrito, a memória daquele tempo…


Um tempo que me devia ter sido feliz, como de resto a infância o deve ser, para toda criança.


Tive avós e pais, tios e tias muito carinhosos. Disso não posso reclamar. Mas tive também uma realidade muito adversa: pais cassados; pai doente, cassado e por pouco tempo, já que ele faleceu quando eu tinha 3 anos; mãe viúva, cassada e, por vezes, muito, muito triste.


Eu tinha sonhos.


Sonhos esquisitos. Pesadelos.

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Não gosto de falar sobre isso, mas sinto que agora devo.
Talvez sirva como um alerta, para que outros não passem o que passei e não admitam a violência como uma coisa banal, normal, em pleno século XXI!


Eu era muito pequena quando tive esses sonhos, mas, na realidade, apesar de muita terapia, infelizmente, a memória deles me causa medo e pânico até hoje.


Perseguição política, pela razão política, é inaceitável, porque ela é a razão do medo causado pela violência ao ato de pensar, que é exatamente o que caracteriza o ser humano. É, portanto, uma violência ao pensamento, à razão, enfim.


Isto vai muito além de querelas partidárias.


É muito grave.


Fere a Democracia e o Estado Democrático de Direito.


Zomba da sociedade civil organizada e instrumentaliza instituições e pessoas.
Acima de tudo, macula almas, fere existências.


Ainda muito menina, eu sonhava que minha mãe era colocada em uma sala escura, presa pelos pés e pelas mãos, em um cano de ferro muito enferrujado. Eu me lembro que o mais próximo que eu conseguia chegar daquela imagem era de um desenho animado do Pernalonga, no episódio em que o Porcolino prendia o Patolino numa briga ou disputa, para assá-lo em uma fogueira.


Mas não! Não era isto! A sala era tão sombria…


E eu me achava uma criança ruim, por sonhar daquele jeito.


Lembro nitidamente de quando eu acordava assustada, com o coração batendo forte, com falta de ar. E eu me perguntava: por que sonho com essas coisas?


No outro sonho que se repetia, nós (eu, meu irmão Ricardo e minha mãe) estávamos saindo da garagem de casa, quando chegavam policiais do Exército, armados, e tiravam a minha mãe e o Ricardo de dentro do fusca, com cara de escárnio, e um deles levantava o banco com o coturno, para virá-lo para frente e poder me pegar.


Eu acordava bruscamente, com o coração aos saltos, com falta de ar e a boca seca.


Por que eu sonhava assim?


Durante muito tempo, ao sair de casa, o pânico era tão forte que eu vomitava.


E assim prossegui. O medo inexplicável como companheiro e minha família como proteção, sempre.


Já adulta, com mais de 30 anos, resolvi procurar ajuda terapêutica, pois até arritmia cardíaca, cheguei a desenvolver.


Encontrei um anjo! Um psicoterapeuta famoso e estudioso que vinha ao Acre, de vez em quando, dar cursos. Consultei-me com ele, que ouviu tudo com muita atenção, pois era do que eu lhe falara, em relação aos sintomas que eu manifestava. Ao final, ele me perguntou assim: “Maria de Nazareth, esse nome é uma missão?”.


Depois, perguntou-me da época do meu nascimento, de como tinha sido a gestação de minha mãe. E eu lhe contei a história toda. Que meu pai havia sido cassado no ano de 1966, depois de ter sido deposto em 1964, do cargo de primeiro governador do Estado do Acre, eleito pelo voto direto.


Contei que, diante dos fatos, meu pai e minha mãe decidiram pela candidatura dela, naquele ano, para deputada federal, mesmo com ele doente, necessitando de seus cuidados e ajuda, e ela, gestante.


Minha mãe já havia me contado que a minha gestação foi bastante tumultuada. Inclusive, algumas pessoas a alertavam de que ela não deveria se candidatar, por ser perigoso, diante do que as mulheres sofriam dentro do cárcere; que ela poderia ser perseguida e torturada, e que poderia dar à luz na cadeia.


Mesmo assim, ela decidiu que o amor a meu pai, seus ideais, os momentos que passaram juntos, era maior que o risco, e manteve a candidatura.


Também durante a gestação, ela passou um grande susto. Enquanto meu pai depunha na Auditoria Militar de Belém, respondendo a um Inquérito Policial Militar, ele infartou e quase morreu. Minha mãe estava no Rio, com meus avós, e ficou muito abalada, pois foi informada pelos médicos que atenderam meu pai, de que ele poderia morrer. Ela foi até Belém, para estar com ele, e fez uma promessa à Nossa Senhora de Nazareth: se meu pai se recuperasse, e eu chegasse a conhecê-lo, meu nome seria Maria de Nazareth ou Nazareno.
Acho que essa foi a missão do meu nome.


Ainda no ventre, partilhei com minha mãe agonias, medos, mas também fé e esperança em um futuro de Vida e Dignidade.


Foi o Doutor Omar Jaled Mustafá que me disse naquela mesma consulta: “filha, eu vou te revelar uma coisa: bebês aprendem a sonhar na barriga de suas mães. Sentem. Têm sensações… Este medo e estas imagens não são teus. Possivelmente, sejam de sua mãe. Só há uma forma de estas sensações diminuírem, e há chances de até desaparecerem. É com uma espécie de hipnose, em regressão”.


E assim fizemos. Há um antes e um depois deste tratamento. Sou muito grata a ele.


Eu me refiz e, com certeza, vivo de uma maneira muito melhor.


No entanto, e foi isso que me fez escrever essa história, a minha história. Sei que o texto é longo e talvez poucos irão ler, mas precisava escrever. Precisava partilhar isto. Pode ser que gere alguma reflexão.


Porque continuo imaginando como que ‘celebrar a ditadura militar’ seja algo recomendável, em um país já tão sofrido e dividido pelo ódio, como o nosso?!


O sofrimento e a violência não são coisas a serem celebrados. Devem ser superados!


Quantas pessoas sofreram? Mães por seus filhos! Filhos por seus pais!


Cadê o mundo civilizado, que abomina ditaduras? Torturas?!Desapareceu?


Há como celebrar os castigos da escravidão, pela cor? Pelo local de nascimento? Pelo gênero? Pela orientação sexual?!


Onde foi parar o respeito ao pensamento?


Esse país precisa de amor, atenção às pessoas, cura, educação e cultura!


Isto sim seria digno de celebração!


*Nazareth Araújo – feminista, defensora da justiça social, advogada pública e ex-vice-governadora do Estado do Acre.


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