Em 2016, em um dia de jogo do seu time do coração, o Atlético Mineiro, pela Copa Libertadores da América, o engenheiro Kaell Braga, de 37 anos, repetiu uma ação muito comum no seu dia a dia: colocar as lentes de contato.
Só que daquela vez ele não teve o cuidado adequado – em vez de usar os produtos certos para desinfecção, optou pela água da torneira.
A partir daí, foram mais de dois anos de luta contra uma doença rara e gravíssima, a ceratite por Acanthamoeba, infecção crônica da córnea causada pelo protozoário parasita Acanthamoeba spp.
“Antes disto acontecer, eu estava sentindo um desconforto no olho esquerdo. Fui ao hospital e a oftalmologista que me atendeu disse que se tratava de um defeito epitelial na camada mais externa do tecido corneano, que eu acredito ter sido causado em uma brincadeira com a minha filha”, relembra.
A médica o orientou, então, a usar uma pomada durante cinco dias e ficar sem a lente neste período. Porém, apenas três dias depois, na data da partida do seu clube, ele, com os ingressos já comprados, decidiu não seguir uma parte das recomendações, e trocou os óculos de grau pela lente de contato.
“O desconforto que eu sentia antes piorou, e meu olho também começou a lacrimejar. Voltei a passar a pomada porque achei que era o mesmo problema, mas dessa vez o tratamento não surtiu efeito. Retornei ao hospital e, depois de duas consultas, me encaminharam para um especialista em córnea”, recorda.
Em junho de 2016, ele recebeu o difícil diagnóstico, resultado justamente daquela – aparentemente inofensiva – lavagem da lente. O que acontece é que a Acanthamoeba spp. está disseminada no ambiente, especialmente na água, seja ela doce ou salgada e, não se sabe ainda o porquê, “gosta” de lentes de contato.
O tratamento de Braga foi feito, inicialmente, com o uso de cinco colírios diferentes, que deviam ser pingados quase de hora em hora, inclusive de madrugada.
“Minha visão foi totalmente afetada, eu não enxergava nada e também sentia uma dor absurda no olho. Tive de me afastar do trabalho por um tempo.”
Após alguns meses, ele até conseguiu se curar da ceratite, porém, o uso prolongado de medicamentos tão potentes acabou prejudicando seriamente sua córnea. Foram inúmeras as tentativas para recuperá-la, como o uso de soro autólogo, feito a partir do seu próprio sangue, e implante de membrana amniótica.
Nada disso resolveu, e a solução final foi o transplante de córnea. A cirurgia ocorreu em março deste ano e, com ela, por ora, ele conseguiu recuperar um pouco da visão – sua acuidade visual atual é, na terminologia médica, de 20/50 – parcial -, o que já é um bom índice para o seu caso.
O engenheiro ainda teve de fazer uma operação para tratar a catarata, mais uma decorrência da Acanthamoeba spp. Por conta destes dois procedimentos, ele ficou sete meses de licença.
“Agora já consigo fazer atividades básicas e até dirigir. Também voltei ao trabalho. Minha vida, finalmente, começa a voltar ao normal”, comemora.
Causas e números
Os principais fatores de risco para o desenvolvimento da ceratite por Acanthamoeba são se expor à água, seja de chuveiro, mar, banheira, jacuzzi e piscina, usando lente de contato, em especial a do tipo gelatinosa. Vale enfatizar que, como o parasita gosta de viver neste ambiente, qualquer pingo pode representar uma ameaça. O descuido com a higiene das mãos no manejo das lentes também ajuda na sua propensão.
Apesar de rara, a doença tem preocupado cada vez mais os especialistas, e isso no mundo todo. O último alarme foi relatado recentemente no British Journal Ophthalmology, publicação científica inglesa. Analisando dados no intervalo de 1984 a 2017, os pesquisadores descobriram um surto no país entre 2011 e 2017.
A literatura médica indica que os casos foram mais frequentes na década de 1980 nos Estados Unidos e na Inglaterra. No Brasil, os primeiros apareceram há cerca de 30 anos.
“Hoje, atendemos de dois a três pacientes por semana, o que é um número muito alto”, afirma Denise de Freitas, membro do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO) e professora do Departamento de Oftalmologia e Ciências Visuais da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Braga lutou dois anos contra a doença e teve que fazer transplante de córnea — Foto: Kaell Braga/Arquivo Pessoal
De acordo com a especialista, a infecção por Acanthamoeba spp. tem um potencial devastador, e é a pior que a pessoa pode pegar nos olhos. “Ela é tão violenta que pode levar à perda do globo ocular”, afirma.
Além de ter os piores prognósticos, os pacientes mais gravemente afetados (cerca de um quarto do total) acabam com menos de 25% de visão ou ficam cegos após um tratamento prolongado – pode durar até 10 meses. No geral, 25% dos casos requerem transplantes de córnea. Há ainda situações em que se faz necessário retirar o globo ocular e substituí-lo por prótese de acrílico e olho de vidro.
Os Estados Unidos e a Inglaterra preconizam que há mais chances de sucesso quando a infecção começa a ser tratada nas primeiras duas semanas.
“O problema é que no Brasil as pessoas procuram os médicos depois de dois meses, então o início do uso de medicamentos é tardio”, diz Denise.
Sintomas e prevenção
Os sintomas da ceratite por Acanthamoeba, que, normalmente, afeta a população jovem e economicamente ativa, são traiçoeiros, começando com desconforto, ardência, coceira, fotofobia e lacrimejamento em apenas um ou nos dois olhos, o que faz com que seja facilmente confundida com outras doenças oculares.
“Só que aos poucos a situação vai piorando e, uma vez instalada a infecção, causa dor intensa. Com isso, o indivíduo não consegue comer, dormir, trabalhar… é um sofrimento imenso”, destaca a professora da EPM/Unifesp.
Keila Monteiro de Carvalho, professora titular de Oftalmologia da Faculdade de Ciências Médicas (FMC) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), comenta que o diagnóstico é difícil e os tratamentos disponíveis são longos e não totalmente eficazes – ele é feito com o uso de colírios, e alguns não existem no Brasil, tendo de ser importados da Europa ou dos Estados Unidos, e antibióticos.
“O tratamento leva meses e há possibilidade de recidiva. Infelizmente, o transplante de córnea continua sendo a última solução em caso de infecção grave. Espera-se que a conclusão recente do genoma da Acanthamoeba spp. agilize a identificação de novos alvos farmacológicos (locais na estrutura do agente infeccioso em que os medidamentos podem atuar).”
É importante salientar que esse tipo de infecção ainda pode trazer outras consequências, como glaucoma, catarata, inflamação da esclera e da retina, queda da pálpebra e cegueira. A depressão é mais uma decorrência comum.
Para evitar a ceratite por Acanthamoeba, o mais importante é não se expor à água quando estiver com lente de contato e ter muito cuidado com a higiene das mãos na hora da colocação.
Keila recomenda ainda descartar a solução de desinfecção de lentes usada diariamente, limpá-las com solução nova todos os dias, trocar os estojos a cada três meses e substituir as lentes nos períodos determinados pelo fabricante.
“Sem dúvida, a visita frequente ao oftalmologista também é fundamental”, finaliza.