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Polifemo, o eleitor brasileiro?. Do mythos ao logos, ou o herói que quer proteger demais e desprotege

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Recebi no fim de semana alguns vídeos de matérias jornalísticas e manifestações “ameaçadoras” aos pré-candidatos que, expondo suas ideias e nomes pelas ruas e redes sociais, estariam fazendo campanha eleitoral antecipada. Podem acabar nem concorrendo, descumprem a lei, o Ministério Público já está atuando, diziam.


Reputo como imprescindível a atuação dos órgãos de controle na garantia da legitimidade e normalidade das eleições. Há quatro anos escrevi “As eleições e a semente da corrupção”, artigo publicado no ac24horas, e continuo basicamente pensando da mesma forma. Entretanto, preocupa-me que a ânsia em proteger, por vezes, acabe nos desprotegendo.

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Aqueles vídeos me remeteram a duas ideias. A primeira, o quanto entendemos o eleitor como um inepto, um incapaz de resistir à astúcia dos candidatos. Lembrei-me do mito de Polifemo, o ciclope (sim, aqueles que só tem um olho no meio da testa) que é enganado por Odisseu dentro de sua própria caverna. Retornando para casa após sua grande vitória na guerra de Tróia, o herói de Homero faz um pit stop na ilha dos ciclopes. Odisseu e os seus companheiros entram em uma caverna procurando comida e bebidas, não sabendo que se tratava do local onde Polifemo dormia e guardava as suas ovelhas.


Comeram e beberam à vontade. Se fartaram. Polifemo, ao regressar do dia de trabalho, fecha a caverna com uma rocha enorme e quando percebe a presença dos invasores agarra dois homens e os devora. Odisseu, nosso grande herói, arranja um plano para todos escaparem. Oferece vinho a Polifemo, que ao perguntar quem lhe oferece aquela bebida excepcional, ouve de Odisseu astuta resposta: “foi Ninguém”.


Quando Polifemo adormece devido à bebida, Odisseu e seus homens afiam uma vara e a espetam no olho do cíclope, cegando-o. No dia seguinte, Polifemo abre a caverna para deixar sair as ovelhas, verificando com o tato se são realmente ovelhas ou os prisioneiros. Estes escondem-se, segurando-se por baixo das ovelhas, conseguindo escapar. Polifemo, ao perceber a fuga, grita aos seus companheiros ciclopes que “Ninguém o tinha cegado”. Por conta dessa sua inocência, é ignorado pelos demais e não consegue evitar a fuga do herói Odisseu.


Seríamos nós eleitores esse ser absolutamente ingênuo, esse coitado que não pode ser deixado às garras do (pré) candidato? Estaríamos nós, necessariamente, tateando no escuro, sem saber distinguir as ovelhas dos predadores? Será que nosso herói também não pode nos cegar?


Proteção em excesso não desprotege?
A última indagação espelha a segunda reflexão que me ocorreu ao receber os vídeos. Refiro-me a minha preocupação com a paulatina restrição de nossas liberdades públicas em favor de um, nem sempre bem definido, “bem maior”. Este assunto é apresentado de forma instigante por Paul Craig e Lawrence Stratton no livro The Tyranny of Good Intentions: How Prosecutors and Law Enforcement Are Trampling the Constitution in the Name of Justice, que numa tradução grosseira seria algo como A Tirania das Boas Intenções: Como Promotores Públicos e as Forças da Lei pisoteiam a Constituição em nome da Justiça, livro ainda sem tradução para o português e que, diante do abismo ideológico que nos separa do liberalismo ali presente, provavelmente não será traduzido tão cedo.


O que importa dizer, em contraponto, é que a caracterização da propaganda eleitoral antecipada é matéria que passou por profundas alterações nos últimos anos. Esta contextualização histórica é importante para ressaltar que, a despeito do acentuado caráter intervencionista e restritivo que a legislação eleitoral vem experimentando nas suas sucessivas reformas, a redação atual do artigo 36-A tem se revelado como um porto seguro em relação à identificação de condutas que não se qualificam como propaganda eleitoral antecipada.


Anteriormente à mencionada inovação legislativa, o Tribunal Superior Eleitoral consolidara o entendimento de que a propaganda antecipada se revelaria quando, ainda que subliminarmente ou implicitamente, sem o pedido expresso de voto, se levasse ao conhecimento do público em geral as plataformas, propostas e intenções políticas, se fizesse menção a pré-candidatura, a eleições vindouras ou se veiculasse a ideia de que o beneficiário da propaganda seria a pessoa mais preparada para o exercício de determinado mandato eletivo.


Este cenário mudou completamente com o advento da Lei nº. 13.165/15, que ampliou sobremaneira as hipóteses de não configuração de propaganda antecipada. A regra de comando originária (não configura propaganda eleitoral antecipada) recebeu como complemento uma condicionante essencial: “desde que não envolvam pedido explícito de votos”. Na sequência, o próprio enunciado prescritivo já prevê dois elementos que estão excluídos do conceito de propaganda eleitoral antecipada: menção à pretensa candidatura e exaltação das qualidades pessoais dos pré-candidatos.


Percebe-se, assim, que a evolução legislativa caminhou na direção de restringir as hipóteses de configuração da propaganda eleitoral antecipada. O ordenamento jurídico pendeu por privilegiar mesmo a antecipação dos debates políticos. Não sem motivo, pois o exercício adequado do direito de sufrágio pressupõe que o eleitor receba o maior número de informações possíveis em relação aos atores do processo eleitoral.


Há de se destacar, ainda, que esse reconhecimento legislativo da legitimidade de manifestações dos pré-candidatos é decorrência do próprio princípio constitucional da liberdade de expressão e da liberdade de manifestação do pensamento. A exposição dos nomes e ideias dos pré-candidatos, a realização de encontros, reuniões, a discussão de políticas públicas, a divulgação de atos parlamentares e posicionamentos pessoais apenas concretizam o direito de participação do cidadão nos debates atinentes à formação da vontade política do Estado.

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O próprio projeto de lei nº. 5735/2013, diga-se, que redundou na aprovação da Lei nº. 13.165/15, tinha como uma das suas premissas “fortalecer a participação popular no processo eleitoral”, definindo que “serão considerados atos da vida política normal, a qualquer tempo, as manifestações que levem ao conhecimento da sociedade a pretensão de alguém de disputar eleições ou as ações políticas que pretenderia desenvolver, desde que não haja pedido explícito de votos”.


O patrulhamento ameaçador debilita o debate democrático, atrofia o embate de ideias ao promover o chamado chilling effect, a inibição do exercício de um direito legítimo pela ameaça de sanção legal. Assim como os outdoors do Bolsonaro, a caravana do ex-presidente Lula não foi considerada ilícita. Ambos permearam o país. Por uns, foram recebidos com aplausos e abraços, por outros com paus, pedras e até tiros. Sem entrar no mérito da evidente antijuricidade destes excessos, fato é que o eleitor parece dar sinais que tem condições de se defender melhor que o Polifemo.


Exercitemos um pouco da liberdade que nos resta.


Edson Rigaud Viana Neto. Advogado. Procurador do Município de Rio Branco. Sócio do Escritório Khalil e Rigaud Advogados Associados. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político. Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Tributário e Processo Tributário pelo Juspodvim. Ex-Conselheiro Regional da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Acre. Ex-Conselheiro da Associação Nacional dos Procuradores Municipais. Contato: kradvogados.ac@gmail.com.


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