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Raimundão: Um dos poucos seringueiros ainda fiel ao legado de Chico Mendes

Por
Nelson Liano Jr.

Parafraseando John Lennon, será que o sonho de Chico Mendes, 30 anos depois da sua morte, acabou? Quem fizer uma visita rápida às colocações da Reserva Extrativista Chico Mende, em Xapuri, terá dúvidas enormes sobre o assunto. A caminho da comunidade Rio Branco, onde vive o sindicalista seringueiro, Raimundo Mendes de Barros, o Raimundão, 73 anos de idade, quem observa as paisagens da floresta tropical nativa nota claros na mata onde se cria gado. Também existem boatos que devido a proximidade da Reserva com a fronteira da Bolívia alguns aproveitam para ganhar um dinheiro extra com o tráfico de drogas, o que nunca foi comprovado. Além da sombra do comércio da madeira clandestina.


Amazônia em risco

A pressão sobre a floresta e a mudança do estilo de vida dos seringueiros da Reserva é um preocupação para o Raimundão. O consumismo do mundo moderno é uma ameaça. Ele teme pelo futuro das novas gerações que se afastam cada vez mais do propósito de Chico Mendes.


“Quando criamos a Reserva a gente queria continuar vivendo aqui sem destruir a floresta. Parte do nosso povo vem fazendo isso, mas tem alguns que não. Dado essa falta de disposição para continuar cortando a seringa e fazer outros arranjos para a nossa cesta de produtos eles ficam se apegando à pecuária. Inclusive, é bom que se diga, que o latifúndio não está aqui fazendo desmatamentos. Mas continua aqui através de parte de companheiros nossos. Os fazendeiros oferecem bois para criar de meia. E convencem os seringueiros que a seringa não vale nada e o que dá dinheiro é o boi. Então arrumam os animais. As pessoas vão pegando corda e fazendo o papel dos fazendeiros não mais de forma direta, mas indireta,” afirmou Raimundão.


“A preservação é a minha preocupação. No lugar de termos a Reserva toda preservada tem muitos buracos dado ao incentivo à criação do gado. O Governo do Estado tem oferecido propostas como o reflorestamento, a piscicultura e colocou muita seringa para os nossos companheiros. Mas quem tem ainda hoje seringa dentro da Reserva? Muito poucos. A minha colocação está intacta. Só criamos vacas de leite onde não tinha seringa e nem castanha. Mas muitos querem fazer pasto para criar boi” explicou.


Consumismo e as novas gerações

Ao falar dos problemas enfrentados atualmente pelos moradores da floresta, Raimundão, faz críticas ao sistema de ensino tradicional.


“Os nossos jovens estão nas escolas. Mas o modelo educacional está errado. Tinha que ter um modelo para a floresta que desse orientação para valorizar o mundo em que os nossos jovens nasceram. Criar mecanismo para que eles desenvolvam as sua atividades e tirem as suas sobrevivências de forma ter a floresta preservada, as águas sadias, os animais livres, de forma sustentável. Isso é possível. Agora, não está acontecendo porque falta esse aprendizado dentro da escola. O jovem quer se preparar para o emprego. Isso é errado e falso. Deveriam estar estudando para fazerem as suas empresas aqui dentro da Reserva. Aprenderem a empreender. Todos querem o celular, a energia, a televisão, a moto, ir na cidade passear, namorar e assistir show. Os jovens da minha época não tinham essas coisas. Nasciam e se criavam dentro da floresta. Isso é muito preocupante porque se já estamos assim, como será o futuro?”


Injustiça histórica

Uma “lenda” entre parte dos moradores de Xapuri é que Chico Mendes era “preguiçoso”. Nesse caso, é mais fácil notar o preconceito das pessoas influenciadas por motivação política. Chico Mendes era um “pensador”, uma espécie de filósofo da floresta e um grande articulador político. Obviamente que depois que começou o seu movimento para impedir a derrubada da floresta pelos fazendeiros latifundiários o seu tempo estava direcionado à organização social e sindical, e não mais para o trabalho braçal. O primo dele, Raimundão, garante que na infância e adolescência os dois cortaram muita seringa juntos e que o Chico era muito trabalhador.


“O Chico nasceu e se criou cortando seringa. As pessoas dizem que o Chico era seringalista e preguiçoso. Isso me revolta porque o Chico nunca comprou e vendeu. Ele produzia borracha como um trabalhador. Cortava borracha seis dias por semana. Naquela época era obrigado o seringueiro cortar seringa todos os dias porque não tinha outra alternativa de sobrevivência. Pra pagar a mercadoria do patrão tinha que fazer muita borracha. Se ficasse devendo eram cortados pelo patrão os meio de sobrevivência,” explica Raimundão.


A verdadeira sustentabilidade

Numa primeira visão da Comunidade Rio Branco, na Reserva, a impressão é a melhor possível. Escola, posto de saúde, barracões de produção, tudo muito bem organizado. Algo que seria impensável até os anos 80 quando ainda os seringueiros viviam como “escravos” dos proprietários de terra, que vieram de longe, para criar latifúndios à criação de gado. As conquistas dos seringueiros extrativistas foram enormes durante as gestões do PT no Acre e no Brasil. Mas atualmente, devido ao retorno cada vez mais avassalador do conservadorismo político, não há dúvida de que todos esses avanços estão em risco, por motivos externos e internos.


A famigerada sustentabilidade virou um conceito intelectual para grupos políticos com intenções eleitorais. A palavra perdeu o seu significado original cunhado pela luta de Chico Mendes. Mas conversando com Raimundão é possível ainda entender a verdadeira sustentabilidade. Ele próprio fez da sua colocação um exemplo de produção sustentável mantendo-se fiel aos princípios que levaram o Chico ao sacrifício de perder a própria vida, assassinado em 88, pela causa de preservação do meio-ambiente e de uma maneira mais humana e participativa de produção para a sobrevivência dos homens e mulheres da floresta.


“Tudo que produzirmos podemos vender. Continuamos vivendo da borracha, da castanha, da agricultura. Tiramos um pouco de óleo de copaíba, água de jatobá e fazemos a intera criando peixes. As condições de hoje não se comparam com daquela época do nosso movimento. Mas muitos não querem cortar a seringa porque acham que rende pouco. Se destruírem a floresta toda pensando em atender essas vaidades de consumo, desmatando, criando gado, ou vendendo a madeira de forma clandestina, vai se acabar tudo. Hoje a gente já sente os efeitos no meio ambiente. Se der uma estiagem grande por causa do desmatamento a floresta incendeia como aconteceu em 95,” afirma Raimundão.   


 “Querem destruir a floresta plantando soja e criando gado para transformar o Acre num deserto. Empurrar as pessoas para as periferias das cidades e aumentar a morte dos nossos jovens com o consumo de droga e a prostituição. No lugar de pensar em oferecer propostas para melhorar ainda mais nossos arranjos produtivos. Incentivar a piscicultura, o reflorestamento, plantar mais seringa e castanha, além do açaí e madeiras plantadas. É possível reflorestar. Precisamos de marcenarias comunitárias e não vender a madeira em tora. Profissionalizar jovens e mulheres dentro da Reserva que sentiriam orgulho de estarem produzindo objetos úteis. Todos estariam ocupados e não pensando na porcaria da droga. Mas espero que um dia a gente consiga,” profetiza Raimundão.  


 Uma breve história do Chico Mendes

Pelas palavras do Raimundão, primo legítimo, com apenas sete meses de diferença na idade, criado com o Chico Mendes dá para entender um pouco da trajetória do líder sindicalista seringueiro.


“O Chico veio com sabedoria de berço. Desde adolescente tinha muita consciência da exploração que a categoria de seringueiros vivia na época pelo patrão da borracha. Se compadecia da revolta do próprio pai e amigos que extraiam a borracha. Chegava uma mercadoria e não dava o mesmo peso da nota do patrão. Isso gerou um inconformismo do Chico que não tinha ido ainda à escola, mas aprendeu a ler e escrever com o pai e o Euclides, um revolucionário que participou da Coluna Prestes e estava refugiado ali na extrema da Bolívia com Xapuri, no Seringal Equador, na casa da família do Chico” lembra Raimundão .


Um mestre misterioso

Na história de Chico Mendes aparece esse personagem oculto que teria tido muita influência sobre a formação filosófica e ideológica de Chico Mendes. O tal Euclides como conta Raimundão.


“O Euclides era oficial do Exército, um homem de muito conhecimento. Carregava livros importantes entre eles, o Livro de Lenin e as Profecias de Nostradamus, que fazia uma leitura dos tempos. Chico falava muito disso comigo. Foi aluno do Euclides durante sete a oito meses que moraram juntos. Vendo o interesse e a desenvoltura da sabedoria do Chico, o Euclides aproveitou para ler muita coisa pra que ele pudesse avançar. O Euclides falou que haveria de vir tempos de mudanças, não dizia quais, mas com certeza previa que esse negócio da seringa não seria perpétuo. Os seringueiros precisariam se organizar através do sindicalismo para poderem clamar por justiça.”


A luta e o legado

Olhando para a luta de Chico Mendes e os seus propósitos poderemos entender um pouco mais do conceito de sustentabilidade que nasceu justamente na Floresta Amazônica, a partir dos movimentos dos seringueiros. Uma história talhada em sangue e sofrimento.


“O nosso movimento sindical começou devido ao fracasso dos seringais e a chegada do latifúndio. A vida do seringal se já era difícil, quando chega o latifúndio, piora ainda mais. Tínhamos o direito de estar numa colocação, tirar o leite da seringa e caçar. Podíamos se mover dentro da floresta com liberdade. Com a latifúndio isso se acaba. Os fazendeiros diziam: aqui eu comprei e vou transformar em fazenda e vocês têm que ir embora. Quando o seringueiro não aceitou passaram a fazer violência derrubando casas e matando,” lembra Raimundão.


“A necessidade nossa era de conquistar o direito de permanecer na terra, trazer os amparos que o Estado tinha a obrigação de dar aos seringueiros e trabalhadores rurais, como a educação, a saúde, entre outras coisas. Também o apoio para criarmos mecanismos para a comercialização dos nossos produtos, a borracha e a castanha. Passamos momentos angustiantes dentro da floresta nos iluminando à noite com sernambi, passando meses sem sal para colocar na macaxeira. Os preços da borracha e da castanha eram baixíssimos e não tinha quem comprasse. A luta era para que os nossos produtos tivessem valor e fossemos reconhecido como pessoas que já tinham dado tanto à Nação e mereciam o mesmo respeito daqueles que estavam vivendo na cidade,” conta Raimundão.


“A Igreja Católica surge com as comunidades eclesiais de base trabalhando o Evangelho da Libertação. Com isso começou trazer o seringueiro para entender a realidade opressiva. Rezando, cantando, lendo e se organizando. Isso foi um fermento. Os padres, junto com o Bispo Dom Moacir, conseguem comunicar-se com a CONTAG, em Brasília. A CONTAG, por sua vez, nomeia um delegado e um advogado para começar articular o sindicato. Aí entra o Chico que era um seringueiro com leitura e escrita que foi escolhido para ser o secretário do primeiro Sindicato de Seringueiros que nasceu em Brasiléia. Uns anos depois surge o Sindicato de Xapuri e o Chico Mendes se torna um líder conhecido internacionalmente,” explica.


Raimundão lembra ainda do assassinato do presidente do Sindicato de Brasiléia, Wilson Pinheiro, e de todos os embates que aconteceram posteriormente. As reações do Governo, e as perseguições que decorreram do movimento dos seringueiros do Acre. E conclui resumindo o resultado do sonho de liberdade de Chico Mendes.


“A morte do Chico não foi em vão. É uma pena que eles (os fazendeiros da época) tenham sido covardes de não irem até o final do debate para ver quem realmente tinha razão. Eles apelaram pela aniquilação física do Chico Mendes. Mataram o Chico numa forma de calar o movimento, mas esse foi o grande engano deles,” finaliza.


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Nelson Liano Jr.

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