“Isso traz muitas reflexões para a vida da gente”. É assim que a procuradora-geral de Justiça, Kátia Rejane de Araújo Rodrigues, em um instante de digressão, encara a doença vencida que estremeceu sua vida. Talvez a palavra para traduzir essa fase marcante que atravessara fosse ‘experiência’, conceito que, no pensador espanhol Jorge Larrosa, corresponde àquilo que nos toca, que nos passa, que nos acontece, aquilo que se prova, se atravessa, que expõe ao perigo, e, ao final, nos forma e nos transforma.
Diagnosticada, em 2014, com um câncer na medula óssea combinado com uma doença rara chamada Síndrome de Poems, ela não perdeu a esperança nos sete meses de tratamento e atribui a rápida recuperação à fé que devotara, embora os médicos lhe tivessem garantido diminuta chance de sobrevivência no transplante de medula óssea. “A fé só me ajudou porque, desde o momento em que descobri que tinha uma doença rara, não olhei o problema, já olhei a solução, que lá na frente eu ia ficar curada”, revela.
No início do ano, Kátia Rejane assumiu a chefia de uma das instituições mais importantes da organização política do Estado, o Ministério Público do Estado do Acre (MPAC), no mesmo momento em que três mulheres comandam o Supremo Tribunal Federal (STF), a Advocacia Geral da União e o Ministério Público Federal (MPF). A ascensão dessas figuras femininas nas altas instituições jurídicas, porém, constitui em exceção, pois, embora as mulheres sejam a maioria da população e do eleitorado, ainda são sub-representadas nas cortes de Justiça, parlamento e nos altos cargos do Executivo.
Kátia Rejane, a quarta mulher a ocupar tal cargo no Acre, assume uma instituição que tem obtido muitos avanços nos últimos anos e cada vez mais gozando de credibilidade pela atuação resolutiva e próxima ao cidadão. No entanto, por outro lado, terá de lidar com uma realidade que ainda envergonha o estado e preocupa as autoridades: o elevado número de violência doméstica e estupros contra mulheres. Só em Rio Branco, a Vara de Proteção à Mulher realiza, em média, 13 audiências por dia, nas quais a 13ª Promotoria de Justiça Criminal atua em todas elas representando o Ministério Público.
Filha de mãe professora e pai telegrafista, Kátia Rejane é natural de Rio Branco e sempre foi focada nos estudos. Sua primeira formação foi em engenharia agronômica, mas não se identificou, e optara pelo curso de Direito na Universidade Federal do Acre (Ufac), área que considera sua verdadeira vocação. Em 1996, ingressou através de concurso público no MPAC, instituição pela qual diz ser ‘apaixonada’. “No Ministério Público, acreditava e acredito que temos a oportunidade de fazer muito pelas pessoas”, defende Kátia Rejane, que atuou, a princípio, como promotora de Justiça substituta de Xapuri.
Nove meses depois, foi chamada para a Promotoria Especializada da Infância e Juventude, pela qual ficara conhecida em razão dos projetos que desenvolvia com o objetivo de enfrentar as problemáticas que atingia esse público, o ‘Vem cá’, que combatia a evasão escolar; o ‘Crescendo juntos’, voltado para a profissionalização de adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas; o ‘Cola de sapateiro: Descole essa ideia’, para dar uma resposta à epidemia de inalantes entre os jovens; e o ‘Juventude e Cidadania’, que promovia a conscientização dos jovens e ajudava na obtenção de documentos.
Sobre esse tempo, lembra que algumas pessoas diziam que ela gostava de ‘brincar de casinha’, por acreditar na atuação extrajudicial como alternativa de transformação social, uma visão pioneira para a época. Ela, no entanto, nunca se intimidou com os chistes. “Talvez o preconceito fosse por eu trabalhar com crianças e adolescentes”, conjetura.
Acompanhando-a há quase 20 anos, o assessor Moisés Alencastro afirma que a maior felicidade que pode ter é quando vê que muitos daqueles adolescentes atendidos pela então promotora conseguiram superar a condição de infratores. “Ela tinha um carinho especial, por ser mãe, ser mulher, mas, na hora de ser firme, era firme”, pondera Moisés, citando, inclusive, casos de pessoas que fizeram questão de convidar Kátia Rejane para ser madrinha de casamento e batismo dos filhos, como gesto de agradecimento.
Sorriso largo e olhar humanizado
Promovida à procuradora de Justiça em 2011, Kátia Rejane foi convidada pelo então procurador-geral de Justiça Sammy Barbosa para o cargo de procuradora-geral adjunta para Assuntos Administrativos e Institucionais. Em seguida, já na gestão da procuradora-geral Patrícia de Amorim Rêgo, ocupou de forma cumulativa a função de procuradora-geral adjunta para Assuntos Administrativos e Institucionais e Assuntos Jurídicos. “Foi nesse momento em que pude estar próxima e entender melhor o que era gestão pública.”
Com a experiência acumulada, submeteu o nome à eleição para Corregedoria Geral, honrando os votos de seus pares do Colégio de Procuradores de Justiça, ao figurar como referência nacional na fiscalização e orientação das atividades funcionais e conduta dos membros do Ministério Público. Para tanto, elaborou novos instrumentos que tornaram mais objetivas as metodologias de avaliação dos membros e lançou mão da orientação para o cumprimento das metas do planejamento estratégico. “A orientação era feita muito nas correições. Era a oportunidade que eu via de conversar com os membros.”
Outra marca sua está relacionada à oferta de serviço especializado de psicologia aos membros e servidores do MPAC. Além disso, não poupou esforço na implantação da Carta de Brasília, um acordo de resultados firmado entre as Corregedorias Gerais dos MPs de todos os estados, com o compromisso de tornar o Ministério Público um órgão mais resolutivo e atuante na luta por transformação social. “O que nós fizemos foi um alinhamento dessas ações dentro do nosso planejamento estratégico”, observa Kátia Rejane.
Eleita procuradora-geral de Justiça por, praticamente, aclamação dos procuradores e promotores de Justiça, no ano passado, ela diz que chega ao topo da carreira no MPAC mais do que uma mulher realizada. Mas a felicidade não está debitada apenas a isso. Deve-se também aos dois filhos formados e à saúde renovada. Tendo em mente dar continuidade ao trabalho que já vinha sendo executado pelos colegas que estiveram à frente da instituição, aponta como virtudes próprias a capacidade de dialogar e a paciência: “Acredito nas mudanças, mas a gente tem que ter paciência para esperar os resultados.”
Em sua gestão, na abertura do Mês da Mulher no MPAC, foi lançada, diante de várias mulheres ilustres que debatiam a conquista do espaço feminino nas instituições públicas, a campanha ‘Falar para empoderar’, voltada ao enfrentamento da violência doméstica, e apresentado o Projeto ‘Acolhimento Institucional’, iniciativa que faz o acompanhamento de mulheres em situação de violência. “O que pudermos fazer para minimizar o problema da violência contra a mulher e elevar sua autoestima, nós vamos fazer”, garantiu.
Como no poema da mineira Adélia Prado, para quem a mulher é desdobrável e anunciada por um anjo esbelto, em contraposição ao poema de Carlos Drummond de Andrade, em que é um anjo torto que o ordena a ser um ‘gauche’, Katia Rejane, em síntese, representa a mulher brasileira que se reinventa na vida, a despeito do preconceito e desigualdades históricas que teimam em vingar no seio da sociedade. Não deixa de esbarrar também com a dificuldade em conciliar dedicação à família e carreira profissional. “Não é fácil, mas a gente consegue”, encerra Kátia Rejane, expressando um largo sorriso.
Texto: Jaidesson Peres
Fotos: Tiago Teles e acervo pessoal