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Reportagem do Conselho Nacional de Justiça mostra a degradação humana no inferno do complexo penitenciário de Rio Branco

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Manuel Carlos Montenegro, da Agência CNJ de Notícias


Cercados por doze policiais militares da tropa de choque, o conselheiro Rogério Nascimento e a juíza auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Maria de Fátima Alves pisaram o corredor central do pavilhão da Unidade de Recolhimento Provisório de Rio Branco às três horas da tarde desta terça-feira (30/5), no auge do calor amazônico.

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A sensação era a de adentrar um enorme forno aceso para queimar lixo lentamente. A escuridão impedia avistar o fim do corredor, menos de 100 metros adiante. Predominava o mau cheiro exalado dos restos das marmitas do almoço, especialmente o azedo do feijão. Ao longo de 10 horas, a missão do CNJ verificou in loco as condições de aprisionamento no estado do Acre.


O grupo já vistoriou prisões do Amazonas e de Roraima, para cumprir a determinação da presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, de conhecer de perto, e não por meio de frios relatórios, o sistema carcerário da Região Norte e a escalada de violência deflagrada nos presídios no fim do ano passado.


No fim da tarde de 20 de outubro de 2016, uma tentativa de invasão de um pavilhão com presos do Comando Vermelho por facções inimigas gerou um conflito armado entre presos do Complexo Penitenciário Francisco D’Oliveira Conde que só foi encerrado com a intervenção da tropa de choque. Segundo agentes que estavam de plantão no local, o tiroteio durou entre uma e duas horas. “Pelo tiroteio, parecia que tinham matado 30”, disseram, sob a condição de anonimato.


Ao final do conflito, quatro presos foram assassinados à bala. O confronto se deu, no entanto, em sangrentos embates corpo a corpo, à moda das batalhas da Idade Média. Terminou com outras 19 pessoas feridas com armas artesanais, improvisadas com barras de ferro e outros objetos cortantes (estoques).


Cela superlotada de presos da Unidade Penitenciaria Doutor Francisco D’Oliveira Conde – Rio Branco AC. FOTO: Luiz Silveira/Agência CNJ

Desde então, a reação do Instituto de Administração Penitenciária do Acre (Iapen-AC) foi isolar as lideranças de facções inimigas em uma unidade prisional exclusiva, dotada apenas de celas individuais. Além disso, o Iapen-AC separou os contingentes de grupos rivais em setores diferentes do complexo penitenciário. No maior deles, destinado ao Comando Vermelho, a missão do CNJ se depara com o que pareceria um calabouço de um castelo medieval, não fosse o tom ocre das poucas lâmpadas que iluminam precariamente o corredor central do pavilhão. O conselheiro Rogério Nascimento para diante das celas, observa e escuta. Ao seu lado, a juíza auxiliar da Presidência do CNJ, Maria de Fátima Alves, anota os relatos da população prisional em um caderno.


Cavernas

O trabalho requer atenção e ignorar o asco que a imundície do lugar provoca. Para-se sucessivamente diante das celas. Os presos se aproximam da porta das celas para falar ao CNJ e torna-se impossível não sentir o cheiro de suor masculino e o odor característico do banheiro mal lavado que exala do fundo. Algumas celas não têm lâmpadas e a parca luz exterior que entra pelas janelas é bloqueada no anteparo dos lençóis e toalhas de banho pendurados para secar (em vão, na umidade amazônica) em varais e redes do chão ao teto da cela. Como se vivessem em uma caverna, os presos que falam são mais ouvidos do que propriamente vistos. “Além disso, ouvimos vários relatos de presos reclamando da assistência à saúde nos pavilhões, inclusive em relação a possíveis casos de tuberculose”, disse a juíza auxiliar da Presidência do CNJ, Maria de Fátima Alves.


Ao transitar de uma cela a outra, para atender todos os presos, é preciso desviar de inúmeros objetos de toda sorte quebrados e jogados no corredor. Os homens contam aos representantes do CNJ que foi resultado da vistoria do Exército horas antes. Segundo os agentes, foram apreendidos uma pistola com 44 munições e telefones celulares, instrumentos do domínio violento das facções, dentro da cadeia e nas ruas. “Quanto a apuração dos objetos quebrados, será encaminhado ofício para apuração ao comandado exército, que é competente para apurar”, afirmou a magistrada do CNJ.


Enquanto acontecia a operação militar, a 10 quilômetros de distância da prisão, em frente a uma creche do bairro Ayrton Senna, um homem foi executado, segundo suspeita da polícia. Dois homens chegaram em um carro, dispararam sete vezes e, à moda dos terroristas islamistas, gritaram o nome de uma facção criminosa enquanto cometiam o crime. Na semana anterior à chegada do CNJ a Rio Branco, entre quinta-feira (25/5) e sábado (27/5), cinco pessoas foram mortas em execuções decorrentes da guerra entre grupos criminosos, segundo noticiário policial local.


Segundo o ouvidor do sistema de segurança pública do Estado, Valdecir Nicácio, membros desses grupos armados “se gabam dizendo ter 35 mil filiados só na capital, Rio Branco” – no interior, pode haver mais. No início de maio deste ano, a Justiça do Acre condenou M.M.C.B. a cumprir a pena de cinco anos e 10 meses de prisão, e a pagar multa por integrar organização criminosa e portar arma de fogo. Detido em blitz da polícia, o condenado tinha dentro do carro dinheiro e papéis onde anotava a contabilidade do crime, o que comprovou suspeita do Ministério Público de ser o homem tesoureiro de uma facção.

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Réus primários e criminosos experientes

Dentro do sistema prisional, a administração tenta evitar novas tragédias com pessoas sob custódia do estado ao concentrar presos de facções rivais em prédios diferentes. Com isso, ignora-se a determinação da Lei de Execuções Penais (Lei n. 7.210/1984) de separar presos condenados daqueles que aguardam julgamento. Assim, em um mesmo pavilhão, convivem presos experientes – alguns têm cargos elevados na hierarquia da facção- com presos que nunca haviam pisado em uma penitenciária antes.


Um condenado de 41 anos relatou ter cumprido cinco anos de sua pena, período durante o qual construiu pias e tanques das celas do presídio, a pedido da direção. Um colega de cela de 29 anos admite ser reincidente, foi preso da última vez acusado de pertencer à facção, o que nega, resposta comum de vários presos, quando perguntados. Em outra cela, com 22 jovens com aparência de quem deixou a adolescência há pouco tempo, a maioria reclama ter cometido crimes de baixo potencial ofensivo, com penas de curta duração, em regime aberto.


No entanto, amargam quatro, cinco, seis meses sem julgamento. “Ao final desse período, eles já estão cooptados para o crime”, afirma o ouvidor do sistema de segurança pública do Estado, Valdecir Nicácio. Para atenuar o problema, a magistrada do CNJ Maria de Fátima Alves afirmou que a “Defensoria Pública será chamada aos presídios para prestar assistência jurídica.


R. F. reclama da morosidade da Justiça. “Estou aqui há quatro meses por causa de uma escopeta velha, amarrada com corda”, diz. Y. R. afirma ter sido preso por receptação e estar há cinco meses preso, sem sequer ter comparecido a audiência diante de um juiz. Alerta para o risco causado pela superlotação da unidade. “Uma hora o pavilhão explode, que nem aconteceu com o Pavilhão K”, diz. O Pavilhão K foi o pavilhão de onde presos saíram na rebelião de outubro, que acarretou a decisão do governo de separar os grupos rivais e isolar as lideranças em uma unidade específica, onde passam o dia e a noite em celas solitárias.


Lideranças isoladas

Separado do Complexo Penitenciário Francisco D’Oliveira Conde, o Presídio Antônio Amaro Alves abriga 74 dos “cabeças” do Comando Vermelho, Primeiro Comando da Capital (PCC), Bonde dos 13 e Ifara, esses dois últimos, agrupamentos acreanos que se aliaram ao PCC. A maioria é do Acre, algumas lideranças vêm de outros estados – alguns presos já frequentaram penitenciárias federais.


As condenações que mantém os homens ali são altas – muitas beiram os 50 anos. O preso mais ilustre do Amaro foi condenado a mais de 100 anos de prisão por homicídio, tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. O ex-deputado federal e ex-coronel da Polícia Militar, Hildebrando Pascoal, foi autorizado pela justiça acreana, em fevereiro deste ano, a cumprir prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica, após ficar preso quase 18 anos, desde 1999.
As regras da unidade restringem os presos a uma rotina sem regalias. Não se permitem sequer canetas dentro das celas, para evitar a disseminação de bilhetes entre os internos. Os presos só são autorizados a calçar um único modelo de sandália, flexível e de sola fina, em que não caibam drogas e outros materiais ilícitos. Os internos do Amaro cumprem o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), alteração da Lei de Execuções Penais e do Código de Processo Penal em vigor desde 2003 que torna mais rígido o cumprimento de penas, especialmente para membros de organizações criminosas.


A direção da unidade atribui à estratégia de isolamento dos líderes, implantada em janeiro deste ano, uma redução no poder de comando das facções e maior segurança no complexo prisional. Caiu a força das lideranças e, com isso, a tensão na população carcerária. O número de faltas disciplinares no sistema inteiro. “Ninguém (das outras unidades) quer vir para o RDD. Aqui não temos visita íntima nem televisão, só uma visita semanal da família. Eles têm direito a ter um ventilador na cela, mas, aqui no Acre, ventilador não é regalia”, afirma o diretor da unidade, que não se sente confortável para dizer o nome. Desde que assumiu o posto, em janeiro deste ano, diz ter recebido ameaças de morte, supostamente de membros das facções.


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