Sammy Barbosa Lopes*
Reza o Evangelho, que Jesus de Nazaré foi crucificado em uma colina nos arredores de Jerusalém, designada por “Calvário”, que deriva da palavra latina Calvaria – o lugar das caveiras, na tradução da Vulgata para Gûlgultâ (palavra de origem aramáica com o mesmo sentido), entre dois malfeitores (Lc 23:32-33), que Mateus afirma serem ladrões (Mt 27:44), um de cada lado da Santa Cruz.
Os textos sagrados não identificam os dois ladrões. Não mencionam sequer os seus nomes, muito menos os crimes que teriam cometido. Assim, não se sabe ao certo o que cada um teria roubado, nem as circunstâncias em que os crimes foram praticados. Se um furto, um roubo (que é o furto praticado mediante violência ou grave ameaça) ou um latrocínio (o roubo seguido de morte). Ou até mesmo um furto famélico (aquele que se comete no desespero da necessidade, para saciar a fome lancinante).
A melhor referência bíblica sobre os dois ladrões é fornecida pelo Evangelho de Lucas, que embora não tenha presenciado a crucificação, afirma que enquanto um dos ladrões insultava Jesus, desafiando-o a salvar-se a si mesmo e a ele, o outro, ao contrário, repreendia o insultador e suplicava pela salvação ao Messias, que lhe prometeu, pela sua conversão, o ingresso no Paraíso (Lc, 23:39-43).
No entanto, na tradição cristã – seguindo o Evangelho apócrifo de Nicodemos, pseudo-epígrafo do século IV, o bom ladrão é chamado de Dimas e o mau ladrão de Gestas.
São Dimas tornou-se assim o santo protetor dos pobres agonizantes, sobretudo aqueles que se convertem na última hora. Bem como, o protetor contra a ação dos “maus ladrões”. Um santo cuja devoção encontra-se atualmente em alta, verdadeiramente na moda. Talvez até um santo de referência nacional, um “Santo Brazuca”. Uma espécie de Padroeiro Nacional. Não é difícil imaginar uma imensa procissão verde e amarela tomando as ruas do país em seu louvor.
São Dimas é um ladrão que tem a nossa total simpatia. Um boa praça, gente boa. Um verdadeiro “Parça”, na melhor definição de Neymar JR. Ou, como na música do Deputado Tiririca: “ele é ladrão, mas é meu amigo”!
É aquele ladrão que a gente pode ser fotografado junto em eventos sociais, pode tomar um whiskynho em eventos públicos, trocar gracejos, cochichar ao pé do ouvido. Pode até contar, ou ouvir, baixinho, aquela piada politicamente incorreta ou pornográfica, que mais ninguém pode ouvir, e depois gargalhar em cumplicidade, sem que os outros saibam do que se está rindo, mesmo estando cercado de câmeras. Mesmo que depois as fotografias estejam no mundo. Não tem problema nenhum. Não arranha a imagem. Mesmo na hipótese de, por ventura, se ser um religioso e de se ter a necessidade de mais tarde vir a pregar sobre o Evangelho e ter que falar sobre a história de Dimas e Gestas. A isenção permanece a mesma. Disso, ninguém em sã consciência pode dizer o contrário.
Ele também é um ladrão, mas e daí? Os pecados dele estão todos perdoados (ou prescritos, ou por prescrever em breve).
É aquele ladrão que bem poderia ocupar qualquer cargo público, por mais relevante que fosse. Não teria nenhum problema. Ele é um ladrão reconhecido e de carteirinha. Está escrito na própria Bíblia. Nós todos o conhecemos de outros carnavais, mas, na gestão das coisas públicas, ele certamente haveria de se portar com retidão e cuidar com zêlo e probidade, exclusivamente em prol do bem comum. Disso também ninguém duvida.
Ao contrário de Gestas. Este, sob hipótese nenhuma. Designado nas mesmas circunstâncias, certamente seria para se esquivar de suas responsabilidades e contas por acertar. Seria para aprontar alguma indignidade.
Pelo fato dos evangelistas não terem narrado os crimes cometidos por cada um dos dois ladrões, não se pode saber ao certo qual deles era o mais perigoso, quem cometeu o crime mais grave, qual era o mais perverso, o mais ganancioso, o mais ardiloso, o modus operandi de cada um… Mas quem se importa com isso?
Se, por um lado, não existe qualquer prova válida que possa ser aferida e efetivamente analisada em relação a nenhum dos dois (o texto bíblico não logrou tais evidências). Por outro, sobram convicções aos crentes: Dimas é o bom e Gestas o mau. O resto é heresia que deve ser evitada. E o dogma teológico proíbe até que se comente a respeito. Em Teologia, não vale a máxima de que “o errado é da conta de todo mundo”. Por isso, é preciso cuidado ao falar. Às vezes, utilizar da mesma tática do Mestre: a metáfora.
Ao contrário de Dimas (o bom ladrão), Gestas é a própria encarnação do mal. É o ladrão desgraçado que deve ser condenado a qualquer custo e sob qualquer pretexto (e para isso tudo é válido) à eternidade de danação no fogo do inferno, sem qualquer piedade. Ele e toda a sua maldita descendência. Assim, quem foi antes dele já foi tarde e é bom que tenha sofrido bastante.
Gestas, já está condenado antes mesmo de ser julgado. O que, a rigor, só acontecerá no dia do Juízo Final. Mas, ao que parece, será mera formalidade.
Gestas é a personificação do “outro”, do diferente, do infame. É aquele de quem não se gosta e nem se pode gostar; com quem não se concorda e nem se pode concordar… É um sem-direitos. Em síntese: Gestas é o “mau ladrão”. Ele não tem identidade, não tem honra, não tem família, não tem passado, não tem história, não tem boas intenções… Não tem nada a ser preservado. Só a ser desconstruído. É um Judas Ahsverus.
Defesa? E precisa? Ele é um ladrão e isso já basta. E o mundo inteiro sabe (e pode confirmar) que nós brasileiros detestamos ladrões, de toda e qualquer espécie (Dimas não conta, ele é um bom ladrão. E é o santo da nossa devoção).
É bem verdade, que, como já dito, não se sabe até hoje o que cada um fez, quanto cada um roubou, em quais circunstâncias e com qual finalidade. O que sabemos é que o antônimo da dúvida é a fé. E só a fé incondicional é válida.
Por isso mesmo, o roubo de Gestas pode ser presumido e nos causa tamanha repulsa e indignação, discursos inflamados, cheios de ódio e moral retórica. O de Dimas é simplesmente relevado. A gente finge que não leu a respeito. Aliás, não fazemos nenhuma questão de saber. Quando raramente se fala, é quase cochichando, para ninguém mais ouvir, ou, no máximo, uma notinha de rodapé aqui e acolá, sem nenhum destaque ou importância, com letrinhas do tamanho das de uma bula de remédio. Não raro, oferecendo alguma atenuante ou justificativa para os seus atos. Ou então, para anunciar a prescrição.
Além do que, o mais grave de tudo, e que precisa ser evitado a qualquer custo e de qualquer maneira (para isso, “o fim justifica os meios”), o risco maior, seria Gestas vir um dia a também ser canonizado, pelo clamor do povo esquecido, faminto e maltrapilho, que não teve a oportunidade de receber a catequese; romper as barreiras, entrar na lista dos santos, conseguir ter um culto próprio, estátuas, igrejas, fiéis… Deus nos livre de tal sorte! Seria o fim! Afinal, Gestas é um ladrão! E, embora eu pessoalmente não faça a menor ideia do que ele tenha realmente roubado, como bom cristão, devo nutrir verdadeiro ódio por ele.
É verdade que o Mestre ensinava que não se deve odiar ninguém. Ele mesmo preferia os estrangeiros, as prostitutas e os cobradores de impostos para divulgar as Boas Novas, do que aos nobres do Sinédrio. Dizia que se deve amar o próximo incondicionalmente como a si mesmo. E que se uma ovelha do rebanho se desgarrasse, era ela que o bom pastor deveria se preocupar em ir recuperar. Chegou até a clamar aos céus, pedindo perdão aos soldados romanos que o torturavam e humilhavam na cruz. Mas isso a gente também pode fingir que não lembra. Odiar Gestas, Ele há de relevar, por certo.
E quanto a São Dimas? Bem, Dimas é diferente. É o santo da nossa devoção. Muitos andam até com uma medalhinha com a efígie dele no pescoço. Outros, fazem questão de exibi-las nas redes sociais. Inclusive antes de ter que se manifestar sobre um e outro, na celebração dominical. E alguns, até são flagrados rezando baixinho no ouvido do santo.
Será que a nossa noção coletiva a respeito de isenção, justiça, santidade e a nossa indignação com a prática do errado, apenas de parte de alguns, não poderia, eventualmente, parecer parcial, seletiva e ocasional a olhos incautos? Não poderia vir a ser confundida com a mais absoluta hipocrisia, tão condenada pelo Mestre Rabi, notadamente em razão de discursos tão distantes da prática?
Não. De forma alguma. O nome disso, inquestionavelmente, é coerência!
Ave Dimas! Somos todos devotos do bom ladrão. E temos todos razão. Só é pecado os roubos de Gestas.
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