Durante esta semana (17 a 22) Rio Branco recebeu na Universidade Federal do Acre (UFAC) a Conferência Mundial de Ayahuasca. O evento movimentou a cidade que recebeu mais de mil visitantes de várias partes do mundo. Cientistas renomados internacionalmente, místicos, xamãs, espiritualistas, terapeutas e indígenas se misturaram no Campus da UFAC em conferências e debates sobre o uso da Ayahuasca. Mas afinal o que é essa “bebida vegetal” que tem merecido a atenção de tantos experts, juristas e buscadores espirituais? Por que tanta polêmica sobre seu uso ritual e terapêutico? Exatamente essas questões que a II World Ayahuasca Conference tratou nesses dias. Tanto no aspecto científico e legal quanto espiritual e religioso.
Ayahuasca em quéchua, idioma dos Incas, significa “vinho das almas”. Trata-se de um chá ou beberagem que mistura duas plantas psicoativas nativas da Amazônia, o cipó Jagube e a folha Rainha. Era utilizada pelos povos originais andinos e das florestas para manter contato com seus ancestrais. O seu uso ritual, abre o canal entre as dimensões materiais e espirituais facilitando a mediunidade dos seus usuários. A bebida foi usada cerimonialmente durante séculos pelos povos primitivos da América do Sul.
Nos tempos modernos, um mateiro do Marechal Rondon, Raimundo Irineu Serra, que estava demarcando as fronteiras brasileiras no Acre, no começo do século XX, teve uma experiência com esse sacramento. Através de insights provocados pela bebida concebeu uma doutrina cristã que se espalhou pelo mundo. Mestre Irineu, codificou os conhecimentos da ayahuasca através do seu Hinário “O Cruzeiro” para que as pessoas comuns pudessem ter acesso ao universo espiritual antes só acessado por pajés. Assim abriu uma porta importante para o entendimento da vida e morte, da materialidade e espiritualidade e da doença e cura. Mestre Irineu facilitou o caminho para o autoconhecimento a milhares de devotos espalhados pelo Planeta.
Esse conhecimento do uso sagrado da ayahuasca espalhou-se pelo mundo nos mais recentes 90 anos. Adquiriu várias formas e vertentes através de egrégoras espiritualistas como o Santo Daime, a Barquinha, a União do Vegetal. Mas o mais interessante é que o uso cristão da ayahuasca acabou sendo também uma chave importante para a retomada dessa cultura de conhecimento espiritual a várias etnias indígenas acreanas que tinham abandonado o seu uso.
A expansão do uso da ayahuasca trouxe alguns problemas. Principalmente o questionamento sobre os seus efeitos. O preconceito de alguns segmentos políticos e religiosos criaram uma fronteira tênue entre a sua utilização espiritual e religiosa e as drogas mundanas.
Nesse sentido o historiador carioca Fernando Ribeiro, 56 anos de idade e 32 como adepto do Santo Daime explica. “Esse evento sobre ayahuasca tem muitas dimensões boas em relação a compreensão da sociedade do mundo moderno desse tema. Está construindo um espaço próprio da ayahuasca diferenciando o seu uso do mundo de crimes e drogas que muita gente confunde. Na realidade a ayahuasca é uma coisa completamente diferente. É um tradição espiritual e de conhecimento que trouxe muitos benefícios à humanidade,” garantiu.
O cineasta acreano Silvio Margarido, de 56 anos, que frequenta desde os anos 80 um centro espírita ayahuasquero da linha do Mestre Daniel, argumenta porque a ayahuasca não é uma droga. “ A diferença é a próprio efeito que a bebida sagrada causa na vida das pessoas. As drogas que usei durante muito tempo, o álcool e a cocaína, estavam me destruindo. O Daime que tomei a partir do anos 80 me curou. Essa é a diferença, uma destrói e a outra cura,” afirmou.
Um dos organizadores do evento, o catalão Oscar Parés, de 35 anos, que teve a sua primeira experiência com ayahuasca aos 18, salienta que um dos objetivos da Conferência é defender o uso da substância. “Queremos responder aos desafios legais, políticos e sociais com a globalização do uso de ayahuasca que se expandiu para os cinco continentes. Criamos um grupo, ‘Ayahuasca Defense’, formado por experts que estão em permanente contato para defender alguma pessoa que esteja sendo perseguida pelo uso de ayahuasca. Fornecemos informações para que os seus advogados, que normalmente não conhecem o tema, saibam de situações similares que tenham acontecido em outros países para usar a jurisprudência a favor do seu cliente,” disse ele.
A Conferência de Ayahuasca teve a participação personagens renomados como norte-americano, Dennis McKenna, um dos maiores especialistas mundiais no assunto. Os organizadores acreditam que o conhecimento científico da bebida vegetal seja uma proteção às tradições ayahuasqueras.
O jornalista espanhol Juan de La Cal, de 51 de idade e 30 anos bebendo ayahuasca, foi um dos organizadores da Conferência. “Nos últimos anos os cientistas têm estudado essas plantas. É importante a pesquisa desse fenômeno emergente. Todos sabemos que a ayahuasca além do seu efeito espiritual é um instrumento terapêutico que pode ser usado em muitos níveis. Então a palavra da ciência é fundamental para o aprofundamento dos estudos sobre o seu uso seguro,” explicou.
A historiadora e pesquisadora da ayahuasca, Vera Froés, que morou no Acre por 12 anos, e foi uma das primeiras autoras a publicar um livro sobre o tema, também reforça a importância da ciência para o entendimento das tradições.
“Estudar as plantas de poder e medicinais é fundamental. A gente viu nessa Conferência vários estudos e apresentações que tratam justamente do poder de cura da ayahuasca. Ela tem efeito antidepressivo e antiansiolítico para pessoas que estão fazendo quimioterapia. Na ayahuasca existem 32 substâncias anticancerígenas. Combate a malária e as verminoses. Fiz um estudo ao ver as pessoas nos seringais do Acre usarem um pano embebido pelo Daime para cicatrizar feridas e perebas. Assim desenvolvi um creme, com a minha filha que é farmacêutica, de ervas da Amazônia que tem a ayahuasca como componente principal. A sua eficácia foi comprovada pela Fiocruz na cura de herpes labial e genital e vários outros problemas da pele,” destacou
Vera também vem se aprofundando no estudo do parto com ayahuasca. “A vantagem é que acelera as contrações e minimiza a dor da parturiente. Sem falar do aspecto espiritual. A parteira é uma xamã que vai ajudar nesse caminho do nascimento. Ela reconecta a mulher com a sua base feminina mais profunda. No Brasil a grande maioria dos partos ainda são cesarianas e essa é uma alternativa para os partos humanizados,” defendeu.
Um aspecto interessante é a retomada cultural e espiritual de algumas etnias indígenas no Acre através da ayahuasca. José Luiz Puwe, uma das lideranças do povo poyanawa, da Aldeia do Barão, em Mâncio Lima, conta como isso aconteceu.
“No passado o nosso povo utilizava essa medicina como forma de ritual, mas também como instrumento de cura. Eram apenas os grandes mestres que faziam o uso. Então de lá pra cá devido ao massacre cultural que o nosso povo sofreu esse conhecimento da ayahuasca ficou adormecido. Só agora recentemente a nossa geração levantou a bandeira do valor da nossa espiritualidade original, da nossa organização social e da relação com a natureza,” contou Puwe.
O resultado desse movimento das novas lideranças poyanawas é que a aldeia do Barão que tinha, no começo dos anos 2000, 90% dos seus moradores convertidos às seitas evangélicas, mudou. Atualmente apenas 10% continuam a frequentar as igrejas evangélicas e o resto da comunidade retomou com força as tradições originais dos poyanawas através do uso da ayahuasca.
Um outro aspecto que foi bastante debatido nos bastidores da Conferência refere-se a manutenção da pureza das tradições com a expansão desse conhecimento pelo mundo. “Se a gente tiver consciência daquilo que estamos falando, fazendo e respeitar os mundos tradicionais e científicos então a gente consorcia os dois momentos. Hoje não se vive mais isolado. Tem muitas coisas que precisamos aliar com a nossa consciência no plano espiritual. O Sol que clareia aqui é o mesmo em qualquer lugar do planeta. Essa força e energia podem ser compartilhadas. O momento é de uma aliança entre os povos da floresta e o mundo ocidental no que se refere ao conhecimento tradicional,” argumenta Puwe.
Mas para Francisquinho, 60 anos, um conhecido ayuhasquero do Juruá, o excesso de debates sobre o tema tira a pureza original da tradição. “Estão discutindo uma legalidade que já existe. Isso tira um tanto a sua pureza. O verdadeiro conhecimento é aquele que se conhece e não se discute, porque se tiver dúvida não é conhecimento. O que sei é que a ayahuasca cura várias coisas porque trabalha com o Eu Superior e Eu Inferior que está dentro de cada um de nós. É uma fé, é uma crença, é uma tradição e um poder. Transcende a religião. A diferença está em cada pensamento das pessoas, mas o conhecimento da ayahuasca é o mesmo não importa a linha espiritual que se participe. Não é tomar algumas vezes e já achar que é um sábio. É preciso se aprofundar como numa escola em que se vai passando de ano e aumentando o conhecimento,” ensina.
Durante a organização do evento houveram alguns mal entendidos com os indígenas. O produtor Oscar Parés, explicou o que aconteceu.
“O problema é que por limitações de recursos não tivemos o trato suficiente com os indígenas. Nós viemos de um mundo imediatista com outro tipo de relação. Deveríamos ter passado mais tempo aqui explicando do que se tratava esse evento. Alguns lideres indígenas entraram no nosso website e leram duas frases e a partir daí começaram a nos criticar publicamente pelas redes sociais. Nos acusaram de neocolonialistas, espanhóis que destruíram indígenas no passado, coisas que estão bem longe da nossa realidade. Somos uma Fundação de utilidade pública e cobramos entradas porque convidamos 60 dos mais importantes cientistas ligados ao tema de várias partes do mundo e isso teve custos enormes. Tudo que se passa aqui está sendo gravado em vídeo e será disponibilizado de forma gratuita pela Internet. Não houve nenhuma intenção de capitalizar financeiramente o evento. Mas passados os desentendimentos trouxemos 120 representantes de 20 etnias e tudo transcorreu em paz,” finalizou Oscar.
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