Jozafá Batista (*)
O filósofo brasileiro Antonio Cicero defendeu em seu blog “Acontecimentos”[1] uma tese polêmica. Para ele a máxima “se Deus não existe, tudo é permitido”, popularizada por Dostoiévski em “Os irmãos Karamazov”, deveria ser invertida: “Se Deus existe, tudo é permitido”.
Sublinho o “popularizada”. A base de toda a reflexão teológica – e, a partir dela, a metafísica – é a ideia de que a existência de Deus impõe uma ordem no mundo, sugere a verdade ao homem e dá um sentido mais “profundo” para a ação política.
Para Cicero é justamente na política que tal tese implode, mostrando-se tão errada quanto perigosa. Evitando o senso comum das “guerras e matanças produzidas em nome de Deus”, o filósofo observa que a ação humana baseada na fé é normalmente considerada superior às atitudes fundamentadas na razão. Isso abre espaço para ilegalidades e mesmo barbáries.
Como assim?
Eventos bíblicos como a destruição de cidades, o assassinato de crianças por um profeta (por ter sido chamado de “calvo”) e até mesmo a entrega de Cristo, o filho de Deus, para a morte planejada pelo próprio Pai não são vistos como atrocidades. Por que? Porque, ao longo do texto sagrado, o leitor é induzido a perceber uma “mente superior” que a tudo governa e tudo sabe desde antes do começo dos tempos. Aconteça o que acontecer, há sempre uma providencial Vontade no controle de tudo.
Ao inventar a democracia os gregos pretendiam que os indivíduos entendessem, pelo debate mútuo, as razões dos seus atos. Autoesclarecimento é tarefa sempre árdua, mas, no embate público, na discussão com seus iguais, os cidadãos percebem melhor a diferença entre valores úteis e danosos, capacitando-se a tomar as melhores decisões. Para os gregos, diferenciar bem e mal era a chave da democracia por permitir que os cidadãos avaliassem seus próprios valores.
Refletir sobre os valores para tomar as melhores decisões tem um nome: ética. É o que nos caracteriza como espécie, pois ser humano significa ser capaz de entender as próprias atitudes, valores, ideias etc como coisas boas ou ruins. A ética nos diferencia dos animais, que agem por instinto – no mundo animal não há deliberação sobre os valores, não há ética. É o que também separa crianças de adultos. Na infância o cérebro ainda em formação se depara com inúmeras situações envolvendo valores, mas a própria capacidade de deliberar e decidir eticamente ainda está sendo construída.
Contrariamente, na bíblia a aquisição da ética foi o primeiro pecado da raça humana. A Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal forneceu o único fruto que o casal primordial não poderia comer. Consumado o ato, o próprio Deus reconheceu que a partir de então “o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal” (Gênesis 3:22). O esforço para tornar essa capacidade algo errático, fadado ao fracasso e incompleto ocupa sistematicamente todo o livro sagrado. Vários trechos associam o esforço ético dos seres humanos à arrogância, prepotência e assemelhados.
Nos anos 70, em ensaio brilhante na revista Nature, o antropólogo Claude Lévi-Strauss ponderou que as religiões monoteístas – Judaísmo, Cristianismo e Islamismo – caracterizam-se por uma “antropologia negativa”: elas tendem a flexibilizar, minimizar e, sempre que podem, ridicularizar o natural esforço humano pela ética. Esse traço, diz ele, foi herdado da religião egípcia, na qual o faraó acumulava o status de rei e deus, de autoridade simultaneamente política e divina. Ao fazê-lo, o faraó procurava impor-se não só como governante, mas também como o dono da própria capacidade de discernimento ético dos governados.
A observação de Lévi-Strauss ajuda a entender o argumento de Antonio Cicero. Sendo o faraó um governante, o efeito de sua transfiguração ao status de divindade tinha pretensões políticas. Ser rei e deus ao mesmo tempo permitia um controle social muito mais efetivo, subjugando toda a vida pública à vontade privada do faraó. Consequentemente, o alvo do argumento segundo o qual os seres humanos não podem ser naturalmente éticos, e sim dependentes de uma força que lhes é exterior, é a política. É o controle do direito formal e da vontade pública.
Na política moderna todas as vezes que uma força exerce o controle unilateral da vida social diz-se que não há democracia. As ditaduras, teocráticas ou não, têm a mesma característica: as leis, que deveriam expressar a vontade dos cidadãos, são substituídas por uma vontade que se diz mais profunda por ter origem transcendente. Esta foi a dinâmica política da Idade Média, com suas monarquias por direito divino – fenômeno que arrefeceu a partir do Iluminismo, com a retomada dos valores democráticos e com ela várias formas de participação popular.
Temos então uma forma de controle da política que, ao longo de séculos, foi identificada como a “vontade divina” – para egípcios, primeiro, e judeus, depois. Essa trajetória é mais claramente compreensível se, dando crédito à narrativa sagrada, lembrarmos que Moisés (autor do Pentateuco, os primeiros cinco livros da bíblia) passou a maior parte da vida na corte faraônica. O Gênesis de Moisés buscava replicar a teocracia do Império Egípcio. Não sem razão. Numa teocracia o sacerdote e o rei, quando não são a mesma pessoa, representam instituições complementares e mutuamente dependentes.
No plano individual, acreditar-se missioneiro de uma ordem superior que lhe estabelece regras e valores muitas vezes “incompreensíveis aos homens” é algo extremamente sedutor – o efeito narcótico desse discurso sobre aquilo que a psicanálise chama de “ego” é ainda mais intenso em períodos de aventuras neoliberais[2] como o atual – e, por isso mesmo, na política suas implicações são devastadoras.
Se a ética é o que nos caracteriza como humanos, sua ausência nos desumaniza. Na política este vazio é facilmente preenchido por discursos de moralização que, como a vontade do faraó, se pretendem universais. O Congresso Nacional brasileiro é pródigo nesse mister: a vontade de Deus, a ordem natural das coisas, os valores da civilização cristã etc costumam nortear as intervenções de nove em 10 congressistas. A repetição sistemática desses discursos, auxiliada por uma poderosa rede de propagandistas nos meios de comunicação e em qualquer esquina das periferias nacionais, opera o feito notável de apagar qualquer traço do seu status derivativo: de ideias secundárias, derivadas do apagão ético, tornam-se valores universais, capazes de substituir com sucesso – e mesmo superar – a ética e a democracia.
Se Deus existe, tudo é permitido – graças a violência e a hiperautoindulgência (aquele sentimento que torna seus portadores incapazes de registrar suas falhas éticas). Essas duas características operando juntas, solapando a reflexão ética, transformando a república nas múltiplas interpretações do Evangelho, tramitando e votando projetos de lei em nome da “religiosidade do povo brasileiro” só pode ter um efeito: mais violência. Novas e ousadas formas de contenção da capacidade humana de construir uma sociedade democrática.
Não se trata, obviamente, de uma fatalidade. É possível cultivar a ética democrática e aceitar o discurso que a relativiza em detrimento de uma ordem transcendente. No entanto, note-se bem, esse exercício paradoxal só é possível quando a segunda diretriz é temporariamente suspensa pela primeira. Em outras palavras, é preciso que aquele caráter errático, fadado ao fracasso e incompleto atribuído à capacidade decisória humana seja por algum tempo “esquecido” para que alguma decisão ética tenha lugar. Se realizado com alguma regularidade, esse exercício produzirá a moral relativista apropriada para equiparar doutrinas religiosas e reflexões éticas. No entanto, como o inconsciente registra o engodo, o subproduto de tal equação é a violência: certezas incertas nunca são defendidas com argumentos, mas com força.
Nietzsche argumentava que o grande legado do cristianismo foi transformar as fraquezas humanas (submissão, temor, fraqueza, ignorância etc) em virtudes, tornando o homem fraco um ideal de humanidade. Uma análise do Sermão da Montanha mostra o acerto desta análise, mas não mostra o mapa dessas “virtudes” no convívio social, com suas redes de vigilância interpessoal operacionalizadas pela violência simbólica e física. Como o homem antiético é tão violento quanto hiperautoindulgente, seus crimes tendem a ser tidos como meros “excessos”, criando ondas de ódios, ressentimentos e vinganças – em suma, mais violência.
A violência e a política são tão antigas quanto o próprio homem. No entanto, a mimetização da democracia por um discurso de controle social, substituindo a ética por uma rede permanente de vigilância[3] às “virtudes”, almeja criar uma outra coisa, outro sistema. Esse processo insidioso está em pleno andamento, financiado por laboratórios poderosos com canais de TV e rádio e longa anuência do Estado brasileiro. Seu objetivo último é o fim da política – em nome de Jesus.
(*) Sociólogo
[1] Para quem quiser conferir o artigo: http://antoniocicero.blogspot.com.br/2007/04/tese-de-ivan-karamazov.html
[2] O reforço ao individualismo militante, ao empreendedorismo pessoal, em suma, ao self made man, prolifera-se nesses períodos de crise como forma de tornar os indivíduos mais suscetíveis à perda de direitos coletivos, como os trabalhistas, previdenciários etc.
[3] É também Nietzsche que nota o quanto noções abstratas como “amor”, “humildade”, “paz” etc podem ser usados pelos fracos como instrumentos para exercer algum controle sobre as ações dos outros, especialmente daqueles que parecem de alguma forma melhores ou mais fortes. Em suma, exigir virtudes dos outros é ter poder sobre eles.
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