Archibaldo Antunes*
Desconheço um período de legalismo tão exacerbado como o de hoje no Brasil. Diariamente, os especialistas nos dão inúmeros exemplos de como as interpretações sobre as mesmas leis podem variar – de acordo com a formação acadêmica, a ideologia ou as paixões de cada um. Enquanto isso, eu e você, pobres e ignorantes mortais, ficamos a ver o estranho desfile das alegorias jurídicas, nelas crendo, ou não, conforme (também) as nossas convicções pessoais.
O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, inventou por esses dias a figura do impeachment do vice-presidente. E por decisão judicial tirou das mãos do presidente da Câmara dos Deputados a prerrogativa constitucional da abertura do processo de impedimento. Obrigou-o a desengavetar o pedido de cassação de Michel Temer, para alegria do governo e espanto da oposição. Eduardo Cunha, por sua vez, ameaçou recorrer ao pleno do STF – e graças a tudo isso muita confusão jurídica ainda teremos pela frente.
Nas ruas, a depender do grupo em que se esteja, dá-se razão a Marco Aurélio, em detrimento do mal afamado Eduardo Cunha. Se a torcida for outra, engrossa-se o pedido de impeachment do próprio Marco Aurélio Mello, conforme propôs o Movimento Brasil Livre.
Na defesa que fez da presidente, dias atrás, na comissão encarregada de avaliar, na Câmara dos Deputados, o afastamento de Dilma, o advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, provou, segundo a militância petista, que o impeachment é golpe. Na opinião dos demais, nada fez além de “encher linguiça”.
Eduardo Cardozo não é dono da verdade, como também não o são os que lhe confrontam as teses com outras, mais (ou menos) elaboradas que as dele. Desse conflito de ideias deveria se originar a verdade, como especularam filósofos. Mas por enquanto são os sofistas que reinam com sua barafunda de discursos bem estruturados, sob os quais se escondem os engodos.
O desfile de estranhezas parece não ter fim. E independente do desfecho que se dê ao processo contra Dilma Rousseff, essa marcha não acabará tão cedo. É a lógica do direito no Brasil, cujas interpretações conseguem ser infinitamente mais profícuas – e prolixas – que a nossa própria legislação.
Há algum tempo, o advogado Sanderson Moura me asseverou em entrevista que existem mais de um milhão de leis em vigência no Brasil. É muita coisa pra um país que não consegue, nem mesmo no STF, estabelecer entendimento sobre as questões mais comezinhas. Me refiro àquelas que, na concepção rasa do povo iletrado, haveria de ter como substrato a coerência e a concretude das coisas cotidianas.
Ocorre que não temos apenas legisladores cuja obra é de dar inveja a escritores de ficção científica, mas também juízes cujas decisões parecem oriundas de outro planeta.
Dou um exemplo. O Estatuto da Criança e do Adolescente protege mesmo os menores que cometeram os crimes mais hediondos. E, recentemente, nossos legisladores tornaram crime hediondo o assassinato de mulheres. Propus a especialistas do direito a seguinte questão: se um menor mata a companheira, ele seria julgado como menor (ou seja, com atenuantes) ou sob a lei do feminicídio (com agravantes)? Os doutores, claro, não souberam responder, como não saberiam os representantes dos segmentos sociais que lutaram para enfiar essas pérolas na nossa já tão enfeitada legislação.
O tema aí acima certamente seria um caso a ser levado ao STF. No colo do ministro Marco Aurélio Mello, ele receberia uma leitura tal. No de Gilmar Mendes, outra bem diferente.
O direito é apaixonante, dizem desde jovens advogados a veteranos dos tribunais. O que sei é que se trata de uma paixão estranha, incapaz de subjugar, no Brasil, os apaixonados a um ponto comum – sobretudo quando o assunto é o impeachment da Sra. Dilma.
Jornalista, autor do romance Amazônia dos Brabos
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