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Sobre linchamentos

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Sammy Barbosa Lopes*


Linchamento não é julgamento. São duas coisas completamente distintas.


Não importa qual seja o grau de escolaridade ou a ideologia que se tenha, o time para o qual se torça, a fé que se professe, o partido político ao qual se tenha simpatia ou antipatia, os interesses que se tenha, a corrente jurídica a que se filie… Nem mesmo nas melhores das intenções; nem mesmo nas situações mais graves. Nada muda esta assertiva. Linchamento jamais será um julgamento.


No dia 6 de julho de 2015, Cleidenilson da Silva, de vinte e nove anos, morreu de joelhos. Foi espancado até a morte por um grupo de moradores após um assalto mal engendrado no Jardim São Cristóvão, um bairro pobre de São Luiz do Maranhão. Seu cadáver desnudo, desfigurado e banhado em sangue, foi fotografado ao lado de várias pessoas sorridentes exibindo pedaços de pau, iguais àquelas fotos que se tiram em safaris, e se espalharam rapidamente pelas redes sociais, provocando infinitos comentários de apoio, incentivo e regozijo.


As poucas vozes que ousaram levantar-se em contrário ao que havia acontecido, em sentido contrário ao “fluxo da correnteza”, à “verdade pronta e acabada”, foram de pronto severamente atacadas, afastadas e descredenciadas. Não importavam os argumentos que continham, simplesmente não eram válidas e ponto final.


Cleidenilson, de fato, tinha tentado assaltar armado um pequeno estabelecimento comercial. Parece não haver qualquer dúvida de que houvera cometido o delito. E essa foi a justificativa para o linchamento.


Ninguém em sã consciência justificaria um assalto à mão armada. Mas será possível se justificar um linchamento?


Esse não é um caso isolado.


Nos últimos tempos temos nos habituado a casos muito parecidos. Muito embora, alguns desses, com algumas nuances de sofisticação e estratégias aparentemente complexas. Outros como um roteiro cinematográfico. Outros ainda, tal como uma final de Copa do Mundo.


No dia 3 de maio de 2014, a dona de casa Fabiane Maria de Jesus foi confundida com uma sequestradora de crianças. Ela estava no bairro em que morava, no litoral paulista, e ofereceu uma fruta a uma criança que estava na rua. A mãe da criança viu o ato e a confundiu com o retrato falado da suposta sequestradora que havia sido divulgado pelas redes sociais. Ninguém se arvorou a checar a história. Checar se ela fazia algum sentido. “Se tinha sido divulgada porque era verdadeira”, simples assim.


Dizia-se que a mulher sequestrava as crianças para realizar rituais de magia negra. A mãe deu o sinal de alerta e pediu socorro. Foi o suficiente para desencadear um processo de fúria coletiva que culminou no linchamento da mulher por cerca de cem pessoas, homens e mulheres. Outras, cerca de mil pessoas, assistiram, em êxtase, divertindo-se e estimulando as agressões. Fabiane trazia consigo um livro com a “capa preta”. Era uma Bíblia. Mas as pessoas, naquela histeria coletiva, diziam que era um “livro de satanismo” e, pronto, bastou.


Ninguém se arvorou a verificar, abrir o livro, ouvir a mulher, informar-se sobre assunto, nada. Não havia tempo. O tempo urgia. “Alguém” disse que aquela mulher era a facínora, sequestradora de criancinhas. Era o suficiente.


Fabiane tinha 33 anos, era casada e mãe de duas crianças ainda pequenas. Foi linchada, espancada até à morte. Ficou desfigurada. O seu cadáver foi arrastado pelas pessoas e exibido pelas ruas do bairro. A sequência de agressões foi toda filmada com telefones celulares. As imagens macabras que ainda hoje estão disponíveis no Youtube são estarrecedoras. Embrulham o estômago.


Ao que consta, nenhum dos agressores tinha qualquer antecedente criminal. Eram todas “pessoas de bem”.


Fabiane era inocente, Cleidenilson era culpado. Mas existe uma semelhança entre ambos: foram linchados, não foram julgados. E, uma vez linchado, mesmo Cleidenilson, o culpado, tornou-se uma vítima.


Ninguém mais suporta a violência fora de controle, a corrupção que suga os recursos da sociedade que deveriam estar financiando a saúde, a educação e a segurança pública; modernizando a infraestrutura do país, expandindo o saneamento básico, melhorando a vida de todos. A impunidade que reina absoluta historicamente no país é uma cuspida diária na cara de cada brasileiro que trabalha duramente e paga seus impostos.


Mas nada disso é capaz de converter um linchamento e um julgamento.


As pesquisas não deixam dúvidas. Todas divulgam os mesmos dados e conclusões: parte significativa da sociedade brasileira apoia os atos de linchamento. Mas nem eram necessárias, isso está expresso diariamente nos comentários das matérias dos websites de notícias e na chamada “rede social”.


O fator mais perceptível, também apontam as pesquisas: é a baixa credibilidade da sociedade no sistema e nas instituições, sem exceção.


Mas seria de fato um linchamento uma forma de justiça?


Os psiquiatras, por sua vez, também são unânimes: durante o êxtase dos linchamentos há muito pouco a se fazer. Não adianta argumentar, chamar à racionalidade, convidar às reflexões, apresentar evidências, clamar por equilíbrio e serenidade, lembrar casos idênticos que foram igualmente praticados por outras pessoas em tempo não muito distante e que foram divulgados, porém tolerados, perdoados e não passíveis de igual linchamento… Nada será o suficiente, nenhum argumento será válido. E, em verdade, ninguém estará muito disposto em ouvir. Ao que parece, o cheiro de sangue consegue inebriar e entorpecer.


Cada um parece aproveitar o momento para liberar seus demônios particulares, sua necessidade de vingança, sua sede por sangue, fazer coletivamente seus acertos de contas particulares, destilar seu veneno e o seu ódio, justificar ali seus próprios fracassos, deliciando-se com as cenas que se desenvolvem. Mas, sobretudo, para livremente e imune a qualquer crítica, manifestar seus preconceitos mais recônditos. Por enquanto, pelo menos, ao que parece, os “justiçáveis” são apenas “alguns”.


O argumento central, um misto de ingenuidade extrema, cinismo e hipocrisia evidentes, é que o crime cometido justificaria, por si, o linchamento. Mesmo que eventualmente algum dos defensores da “justiça informal” tenha alguma conta em aberto com a sociedade, por acaso igual ou até muito mais grave e ainda impune.


Mas o que difere afinal um julgamento de um linchamento?


Certamente, dentre várias coisas, uma ideia civilizada de Justiça, a sua legitimidade e uma garantia mínima de isenção e equidistância por parte de quem haverá de julgar – já que seria esperar muito que a mãe da criança que recebeu uma fruta de Fabiane, alarmada pela notícia da existência de uma sequestradora de crianças à solta e diante da possibilidade de ser ela a abordar o seu filho naquele momento, pudesse ter serenidade e equilíbrio suficientes a superar o instinto maternal de proteção e saber o que seria fazer, naquela fração de segundo, a “coisa certa”, como diria Michael Sandel, professor de filosofia política da Universidade de Havard.


No entanto, ao contrário da mãe em desespero putativo, no caso do linchamento. Em um julgamento, de quem tem a missão de conduzi-lo, em qualquer de suas fases ou etapas, é de se esperar sempre equilíbrio, equidistância e maturidade.


Mas, sobretudo, um julgamento se difere de um linchamento pelo sistema de garantias e formalidades que estejam asseguradas a quem a ele se submete e pela estrita observância aos ritos, procedimentos e liturgias previamente previstos e fixados por quem detenha legitimidade para tanto, notadamente adquirida pela “soberana vontade do povo livre”. Isso independe da índole do criminoso ou da gravidade do crime.


E, nesse aspecto, a Constituição Federal, que instalou no Brasil o “Estado Democrático de Direito”, mesmo em tempos de crise profunda e de fatos estarrecedores, ao que tudo indica ainda em vigor, é rica e extremamente exigente.


Se é verdade, e por óbvio o é, e disso ninguém deve discordar, que “ninguém está acima da lei” a ponto de eximir-se e tornar-se naturalmente imune às consequências por seus atos contrários à lei. De igual forma, não é menos verdade que “ninguém está acima da lei” a ponto de deter o poder de subverter, deturpar, inovar ou manipular ao seu bel-prazer, em um milímetro que seja, as liturgias, formalidades e os ritos previstos e exigidos na condução de um processo que vise realmente elucidar um crime, em qualquer de suas fases e em qualquer de suas vertentes.


Subverter tais liturgias e exigências, por pior que seja “o acusado” (e por mais antipatia e ódio que se nutra por ele) e por mais abjeto que seja o crime eventualmente cometido, não provoca apenas prejuízos ao processo em si – os exemplos disso são inúmeros. Causa prejuízos e rupturas consideráveis ao próprio Estado Democrático de Direito. E, no fim, como na fórmula do benzeno, acaba se voltando e comprometendo a credibilidade das instituições democráticas e, por consequência, estimulando novos linchamentos, como em um ciclo sem fim.


Em um processo justo, os fins, por mais nobres e desejáveis que possam ser, jamais serão capazes de justificar os meios (por mais eficazes que sejam e por mais prestígio pessoal que possam aferir), se tais meios não estiverem estritamente previstos na lei e não forem devidamente legítimos e válidos no sistema jurídico em vigor.


Ao contrário do que se possa pensar, o que difere um linchamento de um julgamento não é o uso da violência extrema. Tanto é, que em alguns países (alguns inclusive apontados como modelo de democracia) um julgamento pode ter como resultado, após o “devido processo legal” e sob o seu “sistema de garantias”, a “pena capital”. Inclusive por meios considerados cruéis no mundo civilizado.


Em verdade, o que difere um linchamento de um julgamento justo é a legitimidade com que ele ocorre e que o autorize e a estrita observância a tais garantias, ritos, procedimentos e liturgias que o definem e o conduzem.


Atos procedimentais, em qualquer processo (em sentido genérico) que não configure um linchamento, de regra não costumam necessitar de complexas teses ou obras de engenharia jurídica que os justifiquem, tampouco de longos e inflamados discursos retóricos. Mas tão somente da simples indicação da norma que o define e o autoriza. Sem que para isso seja necessário esticá-la, tal como uma liga de borracha, até o limite de seu rompimento.


Além disso, outra diferença claramente perceptível entre um linchamento e um julgamento é a necessidade permanente e nunca exaurida, naqueles, de se ficar tentando justificar, a toda hora e a todo custo, os atos praticados. Eis que, em um julgamento, os atos naturalmente se justificam na norma que os preveem e na fase em que se desenvolvem.


Existem várias modalidades de linchamento. Cleidenilson e Fabiane são exemplos disso. Mas todos, sem exceção, produzem “vítimas”, independentemente do que tenham eventualmente praticado.


Umberto Eco, famoso semiólogo e medievalista italiano, infelizmente nos deixou por esses dias. Perdeu a oportunidade de conhecer e talvez até eventualmente tecer alguns comentários acerca dos nossos linchamentos contemporâneos.


Já o padre Antônio Vieira, costumava afirmar em seus sermões que: “o pior dos pecados é o da omissão”.


O perigo maior é que a injustiça é como um bumerangue: um dia volta!


 


Sammy Barbosa Lopes, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Acre – atualmente afastado para estudos e aperfeiçoamento, membro da International Association of Prosecutors, ex-procurador-geral de Justiça, ex-vice-presidente do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e da União – CNPG, Ex-coordenador do Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado – GAECO, mestre em Direito pela UFSC e doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa.


 


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