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Umberto Eco e o desrespeito ao texto nas superinterpretações do Supremo

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Por André Karam Trindade


Umberto Eco (1932-2016) despediu-se de nós dois dias após o Supremo Tribunal Federal ter modificado seu entendimento sobre o princípio constitucional da ampla defesa, passando a admitir a execução provisória da pena após decisão condenatória de segundo grau, à revelia do disposto expressamente no texto constitucional.

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Reconhecido mundialmente, sobretudo após a publicação do romance O Nome da Rosa (1980), obra traduzida para mais de 40 línguas e adaptada para o cinema, além de renomado escritor, Eco foi um importante teórico — no caso, filósofo e semioticista —, cuja leitura se mostra cada vez mais imprescindível para os juristas, especialmente nos últimos dias.


Tento explicar, rapidamente, o porquê.


Em Obra Aberta, publicada nos anos 1960, Eco sustentava o papel ativo do leitor na interpretação de textos escritos, comunicações orais, manifestações artísticas etc. No entanto, três décadas mais tarde, em Interpretação e Superinterpretação, o mesmo Eco discute os exageros dos intérpretes, destacando serem os excessos por eles cometidos os verdadeiros responsáveis pelas más interpretações.


Essa mesma ideia também está presente em Os Limites da Interpretação, onde Eco resgata o valor do texto. Para ele, a possibilidade de um mesmo texto comportar diversas interpretações, em razão de sua plurivocidade, não significa, de maneira nenhuma, que desse mesmo texto se possa fazer qualquer interpretação. Algumas interpretações são manifestamente equivocadas, não podendo prevalecer por violarem a materialidade do próprio texto: “Frequentemente os textos dizem mais do que o que seus autores pretendiam dizer, mas menos do que muitos leitores incontinentes gostariam que eles dissessem” (Eco, Umberto. Os Limites da Interpretação. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 81).


É preciso, portanto, respeitar o texto. Há critérios para limitar — e controlar — a interpretação. Aqui reside a importância da hermenêutica filosófica. Como alerta Eco, “existe um sentido dos textos, ou melhor, existem muitos, mas não se pode dizer que não exista nenhum ou que todos sejam igualmente bons. Falar dos limites da interpretação significa apelar para um modus, ou seja, para uma medida” (1995, p. 34).


Se, num primeiro momento, Eco privilegiou a autoridade do leitor — e, aqui, ele cita a maliciosa sugestão de Todorov: “Um texto não passa de um piquenique em que o autor traz as palavras e os leitores o sentido” —, contribuindo para certa arrogância do leitor, que assumiu um papel ativo demais na atribuição livre de sentidos; num segundo momento, Eco preocupa-se com os limites que o texto impõe à atividade interpretativa: entre a inacessível intenção do autor (intentio auctoris), muito difícil de se descobrir, além de irrelevante para a compreensão, e a discutível intenção do leitor (intentio lectoris), que desbasta o texto até atingir uma forma que sirva a seu propósito, existe a intenção do texto (intentio operis), que refuta interpretações absurdas e insustentáveis.


A conclusão aponta para um processo intersubjetivo de cooperação entre o leitor, o autor e o (con)texto, que ocupa a centralidade dessa interação dialética. Isso porque o leitor sempre se encontra com o texto por meio de sua manifestação linear. Sua interpretação, entretanto, sempre dependerá do horizonte de sentido e de expectativas do leitor. Ocorre que, para além disso, há uma enciclopédia cultural que abarca não apenas a língua e seu funcionamento, mas também o registro de todas as interpretações anteriores desse mesmo texto, isto é, a tradição conformada por determinada comunidade de leitores, uma vez que um texto sempre remeterá a outro texto, que remeterá a outro texto, e assim por diante. E isso não pode, jamais, ser ignorado, ao menos quando se busca uma interpretação adequada.


Assim, a superinterpretação — sempre mais polêmica porque exagerada — seria uma leitura inadequada de um texto. Ela caracteriza-se pela imposição da vontade do leitor, que desrespeita a intenção do texto, ao violar a sua coerência ou, então, ultrapassar seus limites semânticos, apoderando-se de seu sentido.


Eis, aqui, apenas um exemplo do legado teórico de Umberto Eco. Que suas lições ecoem na comunidade jurídica, especialmente no Supremo, que tem insistindo em superinterpretar a malsinada Constituição.


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