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Crônica de um Francisco: E se um dia não pudermos chorar

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Roberto Gaz

Por Francisco Rodrigues Pedrosaf-r-p@bol.com.br


Bianca e Pedrosa se casaram em 1976. Amor eterno, daqueles que se traduzem na comunhão de dois corpos que verdadeiramente formam um. Almas perdidas, contrárias às que se encontraram nas teias de uma vida cheia de mágoas, desilusões e sofrimentos.


Se tudo tinha que indicar essa união pura e singular, decidiram, após um acordo singelo, gravar num quadro o retrato dos dois sorrindo, olhando para um horizonte desconhecido, numa nítida impressão de que tinham encontrado algo.


Dessa união, nasceram Lígia e Caio. Passaram todas as fases da vida em seus mundos, vivendo suas idades, até deixarem os pais e seguirem seus caminhos em outros estados. Ela como arquiteta; ele como médico nos confins da Amazônia. Nunca deram atenção ao quadro que testemunhava o amor do casal no alto da estante de madeira nobre e cheia de livros. Os sujeitos desse matrimônio tinham na leitura o segundo maior prazer na vida.


Quando voltaram para vender a casa, após a morte de Bianca, ocorrida seis anos depois da de Pedrosa, os dois filhos resolveram doar os livros para uma biblioteca pública, a estante para o próximo morador da casa vendida; mas não se deram conta de que ali havia um quadro envelhecido e banhado por uma fina poeira que as mãos de Bianca, quando, quase viva, não conseguiam mais alcançar.


No móvel doado, então, foram postas outras coisas, remédios, aparelhos eletrônicos, contas a pagar; e até uma maquete de um navio, fazia agora companhia a uma gravura que tinha passado sem ser notado pelo senhor, cujas preocupações estavam mais concentradas com suas doenças, resultantes de uma vida mal regrada.


Morou na casa por dez anos, até o curso da vida se encerrar diante de seus olhos. Faleceu sozinho e sem ninguém, seria esquecido ainda mais, não fosse a visita do jornaleiro que não lhe encontrou naquela manhã no banco da frente. O único herdeiro de seu Osvaldo era um sobrinho que vivia com os filhos numa cidade vizinha. Nunca tinha ido visitar o tio, e quando soube do sinistro, lamentou-se até saber que o imóvel seria seu por herança.


Achou a casa feia, moveis vetustos, sem brilho e sem alma davam ainda mais caducidade àquele recinto que um dia testemunhou dias tão felizes. Decidiu vendê-la para um comerciante que via no local um ótimo ponto para desenvolver suas atividades. Limpou seus pertences, queimou papeis e roupas velhas, deixando, na casa, apenas aquela estante manca e aquele quadro, que julgou ser da época em que seu tio era novo e tinha amado uma linda mulher.


Por ser bucólica e passiva, com tintar e desenhos que já não mais existiam, o Doutor Humberto decidiu demoli-la, limpar a face do terreno daquele museu e fincar os novos tempos do empreendedorismo mercantil. Faria uma lanchonete e traria mais progresso à região.


Antes que as máquinas começassem os trabalhos, José, o assistente da firma de demolição, falou com o motorista para que lhe deixasse tirar aquela estante velha, visto que era o dia do aniversário da esposa e via no móvel, depois de alguns reparos que ele mesmo faria, um ótimo presente para lisonjear o dia.


Uma leve brisa se juntou aos movimentos decorrentes do transporte da estante até o caminhão e derrubaram o quadro que parecia não querer desgrudar de sua antiga companhia. José o apanhou no chão, limpou a poeira do vidro e lembrou-se de seus avós que faleceram quando ainda era uma criança. Decidiu não jogar fora aquela memória, quem sabe o filho mais novo não pudesse ver na gravura mais um brinquedo seu de montar e desmontar.


A criança fez do quadro seu brinquedo preferido, descartando tudo o pouco que tinha em seus pertences. Nada lhe era mais forte que a imagem daquele casal que olhava pro além. Seus pais ameaçaram muitas vezes de jogar o quadro fora, caso ele não concedesse atenção à vida que acontecia fora de seus infindáveis diálogos com a gravura.


Por não ter tido a sorte de ser mãe, e já adiantada na idade, sem o irmão que morreu num acidente de avião e o marido que foi traído pela recusa do coração em bater, Lígia, ao voltar para cidade que nasceu, resolveu adotar uma criança. Era uma tentativa de vencer a solidão e a tristeza que toda uma vida econômica decidida não preenchia.


No educandário, sentiu amor eterno por aquela criatura que guardava o olhar sempre em diagonal, com roupas simples e com um quadro na mão, como se fosse mesmo parte de seu pequeno corpo. A sorte visitava pela segunda vez aquele menino. Por não ter dormido cedo, conversando com as pessoas do quadro, Silvano conseguiu ver o fogo crescer rapidamente e consumir toda a casa onde dormiam também seus pais ultrapassados em bebidas, fortemente embriagados.


Ao chegar ao novo lar, já com um novo nome dado por Lígia, o pequeno Pedrosa mostrou com amor o quadro que tinha em seus domínios, regalo de seu falecido pai. Ao olhar melhor para a gravura, com lagrimas nos olhos, Lígia reconheceu os personagens e não soube e não pode dizer mais nada depois que o filho com uma voz que não era bem a sua, envelhecida e rugosa, perguntou: filha por que vocês nos abandonaram?


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