O sistema de comercialização de créditos de carbono no Acre pode estar comprometido; imprensa nacional destaca problemas e revela perseguição, medo e frustração vivida pelos ribeirinhos e produtores que vivem em áreas florestais do interior do estado.
João Renato Jácome
A série “O Comércio na Floresta do Acre”, que entra hoje na sua terceira reportagem especial, já mostrou a falta de regularização fundiária em muitos seringais. Ainda hoje áreas com alto nível de preservação ambiental continuam motivando sérios conflitos entre fazendeiros e seringueiros, mas também abre caminho para projetos de manejo da floresta que nem sempre beneficiam a população tradicional.
Essa é uma das problemáticas percebidas pela jornalista Verena Glass, durante visita ao Acre. O material foi encaminhado ao ac24horas e os fatores que levaram a isso não são nada positivos. Tratam de políticos que iniciaram projetos de comercialização de créditos de carbono. Fala de pessoas que perderam direitos e passam por limitações em casa. Revela, ainda, como realmente funciona o cuidado com a floresta e propostas de sustentabilidade.
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Nesta etapa da série especial, o leitor vai entender que problemas neste sentido foram relatados nos três primeiros projetos privados de crédito de carbono no Acre, propostos no contexto do Sistema de Incentivos aos Serviços Ambientais (Sisa, aprovado por lei em outubro do ano 2010) e que pretendem promover a preservação florestal e a venda de créditos de carbono através de iniciativas de REDD+ (Redução de Emissões provenientes de Desmatamento e Degradação Florestal).
Os projetos Purus, Valparaiso e Russas preveem restrições e até paralisação das atividades tradicionais de cultivo agrícola de famílias de seringueiros e posseiros, para que emissões assim evitadas possam ser vendidas no mercado internacional de créditos de carbono.
O Projeto Purus, idealizado pelo ex-prefeito de Sena Madureira (AC), Normando Sales, e pelo advogado Wanderley Rosa, foi apresentado ao Instituto de Mudanças Climáticas (IMC) do Estado em junho de 2012. Abrange cerca de 34,7 mil hectares dos seringais Porto Central e Itatinga, localizados às margens do rio Purus entre os municípios de Sena Madureira e Manoel Urbano, e onde vivem 18 comunidades de seringueiros, posseiros e pescadores.
Apresentando-se como donos dos seringais, em 2009 Sales e Rosa começaram a procurar os moradores locais – muitos dos quais vivem na área há mais de 40 anos – para discutir o projeto, e no início de 2011 propuseram a 17 famílias que firmassem um acordo pelo qual deixariam de fazer o manejo tradicional de lavouras (brocagem, a roçagem e queima de mato), caça, retirada de madeira, abertura de picadas e estradas, e qualquer outra ação de interferência na vegetação. Para monitorar o cumprimento do acordo, seria criado um sistema de fiscalização de infrações e providências quanto à punição dos infratores.
Para viabilizar a parte econômica e técnica do projeto (que encontrava-se, à época, ainda em fase de registro no IMC), foi acordado um investimento inicial com a empresa CarbonCO, LLC, subsidiária da Carbonfund.org Foundation, localizada em Bethesda, Maryland, EUA. O inventário do carbono que deixaria de ser liberado sem os manejo tradicional dos seringueiros foi supervisionado pela empresa de consultoria TerraCarbon, LLC, de Illinois/EUA. E a venda dos créditos de carbono resultantes será feita pela The Carbon Neutral Company, de Londres.
De acordo com os moradores dos seringais, desde o início o projeto causou desconfiança entre a comunidade. Vários movimentos sociais do Estado, críticos às soluções de Economia Verde propostas para mitigar problemas ambientais a partir da financeirização dos bens naturais, e preocupados com possíveis violações de direitos, também questionaram a iniciativa, o que motivou uma visita da Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente da Plataforma DHESCA (Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais), o que vem sendo discutido nessa série de reportagens especiais.
Em depoimento aos pesquisadores da relatoria, João*, produtor de banana e morador do local há mais de 35 anos, relata: “um dia chegou aqui o Normando [Sales, dono do seringal Porto Central], e já começou ameaçando. Disse que aqui tudo era terra dele, mas ele nunca apresentou título do Incra. Eles chegaram com um documento para a gente assinar, desse negócio de carbono, e disse que quem assinava podia ficar na terra, quem não assinava tinha que sair”. Em troca da assinatura, conta o seringueiro, Normando Sales prometeu que traria para a comunidade uma série de benfeitorias, como escola, posto de saúde, casas novas, barco e energia solar.
O documento mencionado (assinado por João, mas não entregue ao fazendeiro) reafirma por diversas vezes que o assinante reconhece a propriedade das terras em nome da empresa Moura e Rosa Investimentos Ltda, criada em 2009 por Normando Rodrigues Sales e Wanderley Cesário Rosa, seus diretores. Legalmente, a empresa e a área do Projeto Purus pertenceriam a Felipe Moura Sales (filho de Normando) e Paulo Silva Cesário Rosa (filho de Wanderley). “Essa é uma das questões que mais preocupa a comunidade”, explica João, que afirma já ter dado entrada no programa Terra Legal para tentar a regularização de seu lote.
FUTURO EM CHEQUE
No início de 2013, possivelmente por pressões das famílias, um relatório de execução do projeto, elaborado pelo técnico da Carbon.Co, LLC, Brian McFarland, aponta novas regras para o uso da terra. Além de reconhecer que “existem comunidades assentadas sobre o que eram originalmente terras de propriedade privada”, o documento afirma que, “para resolver este conflito ou disputa, Moura & Rosa irá reconhecer voluntariamente qualquer área desmatada e sob uso produtivo de cada família que vive no Seringal Itatinga parcelas Seringal Porto e Central.
O fato é que a área mínima a ser intitulado de cada família será de cem hectares, que é o tamanho mínimo que o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) diz que uma família no Estado do Acre necessita para uma vida sustentável. As comunidades que desmataram e colocaram em uso produtivo mais de cem hectares receberão toda a área que foi desmatada. Todas as comunidades – que se unirem voluntariamente o Projeto Purus ou não – serão chamadas à terra que eles têm colocado em uso produtivo. Este processo será facilitado por um grupo independente, incluindo o Ministério Público do Acre”.
De acordo com a advogada Laura Schwarz, do Centro de Memória das Lutas e Movimentos Sociais da Amazônia, no entanto, a questão não se resolve. Para justificar o Projeto Purus, baseado na hipótese do “desmatamento evitado” para a geração de créditos de carbono, a empresa Moura & Rosa alegou que, como proprietária, poderia converter parte da floresta dos seringais em pastagem (prevendo o corte raso de 20% de sua extensão total para acomodar de 10 a 12 mil cabeças de gado), além de desenvolver atividades madeireiras.
Em tese, o proposto segue uma lógica inversa e perversa, explica a advogada. Para ela, criminaliza-se o manejo tradicional dos pequenos agricultores, impondo-lhes restrições que justifiquem a venda de carbono (apesar de o próprio governo do Acre ter reconhecido que o uso do fogo é essencial na agricultura familiar de pequeno porte, e sua proibição poderia causar insegurança alimentar), e limita-se definitivamente o desenvolvimento futuro da comunidade através da restrição da área disponível.
“Além da agricultura, as famílias também usam as áreas florestadas para caçar, para o extrativismo, retirada de madeira para casas ou construção de canoas. Isso passaria a ser proibido, bem como o estabelecimento de atividades produtivas das próximas gerações. Como ficariam os filhos dos posseiros se não puderem estabelecer futuramente seus próprios lotes produtivos, com casas e roças?”, questiona a advogada.
DESMATAMENTO INCENTIVADO
Muito similar ao Projeto Purus, os projetos de REDD+ nos seringais Valparaíso e Russas (cujo Instituto de Mudanças Climáticas não confirmou o registro), tão logo foram oficializados junto ao governo do Estado, já estabeleceram, segundo a jornalista Glass, uma série de restrições às suas comunidades.
Localizados em áreas de mata fechada no rio Valparaiso, afluente do Juruá, no município de Cruzeiro do Sul (AC), os dois projetos são gerenciados pelo ex-deputado federal Ilderlei Souza Rodrigues Cordeiro (dono da I.S.R.C. Investimentos e Assessoria LTDA), em parceria com as empresas americanas CarbonCo e Carbon Securities.
De acordo com os moradores das comunidades Valparaíso, Terra Firme de Cima (localizadas na área do Projeto Valparaiso) e Três Bocas (na área do Projeto Russas), apesar de lidarem diretamente com Ilderlei, o dono dos seringais seria o fazendeiro Manoel Batista Lopes, envolvido em sérios conflitos com os seringueiros na década de 1990. A situação dos trabalhadores, segundo relatório feito na época pelos procuradores do Trabalho Victor Hugo Laitano e João Batista Soares Filho era análoga à de escravos, conforme detalhado na pesquisa “Trabalho compulsório, poder e transgressão no rio Valparaíso – Alto Juruá – Amazônia brasileira – 1980-90″.
“Pelo que sabemos, o Ilderlei arrendou essas terras do Manoel pra fazer esse projeto de carbono. Ou comprou, não sabemos direito”, explica José*, da comunidade Valparaiso. “Desde os anos 1980, estamos lutando pela titulação das terras, queremos a criação de uma Reserva Extrativista (resex), mas eles vieram e falaram que resex não é um bom negócio pra nós. Já teve muito conflito aqui por causa disso”.
Produtores de farinha de mandioca, principal fonte de renda das comunidades, os seringueiros explicam que o processo de implantação do projeto de carbono nunca foi explicado direito. “Chamavam uma família aqui, umas cinco ali, nunca todo mundo junto, e falaram que ia ter projeto quer a gente queira, quer não. Falaram que a gente vai ser proibido de brocar e botar fogo, e que em troca iam dar de colher a geladeira. E cursos. Falaram que iam dar máquinas, mas aqui, pra chegar, só se for de helicóptero. Mas até agora não veio nada, só as placas (dos projetos). Eles inclusive tomaram a madeira que a gente tinha cortado pra nossa igrejinha, pra fazer as placas. Hoje temos placa do projeto, mas a igreja continua sem paredes”, afirma João.
Moradora da comunidade Terra Firme de Cima, dona Rosa*, 68 anos, confirma que o desconhecimento dos detalhes do projeto é geral. “O Ilderlei passou de casa em casa com um documento e fez a gente assinar, muitos nem sabem ler, ninguém sabe o que assinou. Disse que a gente nunca mais ia poder botar fogo nas roças, mas que ele ia dar mucuna (semente de adubação verde) pra gente, que a gente ia produzir o dobro. Mas ninguém nem sabe o que é mucuna. E das outras coisas que ele disse que ia dar, não deu nada”.
De acordo com outro morador, Ilderlei teria dito que a proibição da brocagem e do fogo começaria ainda no ano 2014. “Aí ele falou pra gente desmatar bastante esse ano [referindo-se a 2013], quem brocava dois hectares devia brocar quatro, mas que não era pra contar pra ninguém. E que ano que vem estaria tudo proibido”.
Em Três Bocas, os moradores confirmam o incentivo “secreto” ao desmatamento, mas acrescentam que houve também uma promessa de que as áreas de uso poderiam eventualmente ser tituladas para as famílias. “Mas a gente acha que quem titula terra é o governo. Se temos o direito à terra, não precisa ter promessa de fazendeiro dizendo que vai fazer, porque até agora tudo que prometeu não cumpriu. Faz quase um ano que o Ilderlei não aparece aqui”, afirma um morador.
Questionados se a comunidade foi suficientemente informada sobre o projeto, outro morador conta que certa vez estava andando com um “gringo” no mato e, quando quebrou um galho, “o gringo ficou todo ouriçado, disse que isso era crime. E carbono é que nem caviar, a gente ouviu dizer que existe, mas nunca viu. Alguém lá fora vai ganhar dinheiro porque nós vamos deixar de fazer roças para alimentar nossas famílias? Isto não me parece justo”.
TUDO MENTIRA!
O empresário Ilderlei Cordeiro, que já foi deputado federal quando filiado ao Partido da República (PR), negou todas as acusações. Para ele, as denúncias são tentativas de criar fatos e políticos e foram plantadas por pessoas ligadas ao Partido dos Trabalhadores (PT). Ele confirmou ao ac24horas que é o proprietário de um dos projetos, o Russas, mas que nem o dele, nem o Valparaíso, comercializaram carbonos as últimas semanas.
Ilderlei garantiu que as promessas foram feitas, mas que o cumprimento só acontecerá quando o projeto caminhar sozinho, com as vendas. “Eu, apenas como gestor do projeto Russas, eu visitei todas as famílias. Eu não estou proibindo nada. Eu estou dizendo que o projeto vi beneficiar as famílias, que vamos buscar outras formas de ajudar eles a não desmatar ou queimar mais. Quando estivermos com o investimento sendo feito mais forte lá dentro, aí nos vamos começar a fazer um monitoramente. Por quê? Porque a lei já proíbe a queima e desmate”, desmente Ilderlei.
O empresário garante que todos os projetos já desenvolvidos foram feitos com recursos “do bolso”, tudo para melhor atender as pessoas que estão dentro do projeto. “Não é fácil. Temos crédito de carbono aprovado, mas nada vendido ainda. Estamos só tirando dinheiro do bolso. Eu ainda não vendi nenhum crédito. A expectativa é vender agora no fim do ano, e no início do ano que vem. Tudo está registrado. Nosso projeto é público. Nós falamos no rádio, mandamos informativo”, completa ao dizer que “esse povo que critica não vai lá, para criticar”.
Ainda segundo Ilderlei, “primeiro que eu não forço ninguém. Nunca enganei ninguém. A gente conversa sobre o que o projeto tem para beneficiar a comunidade. A semente de mucuna, que foi prometida, é exatamente uma parte do curso que já foi dado. Quem explicou isso foi um especialista da SOS Amazônia. Dando certo, amém, vai ser uma benção no projeto de vocês. Ainda não saiu recurso para essas compras”, diz. Para ela, a jornalista que diz ter visitado o projeto foi financiada pelo “pessoal do PT. E eu não estou dizendo que é o PT, mas um grupo do PT. Mas não deu nada. Nosso projeto está bem”.
Também citado na reportagem, Normando Sales, que é um dos responsáveis pelo Projeto Purus, que fica em Sena Madureira, também negou que tenha obrigado qualquer pessoa a assinar documentos, entre eles contratos que privam as pessoas dos diretos fundamentais aos homens da terra. “Eles devem ter sido financiados por alguém para ter escrito isso”, diz ao citar os jornalistas da Plataforma Dhesca Brasil. Normando comparou a equipe da instituição ao líder do Primeiro Comando da Capital (PCC), um grupo formado por criminosos no estado de São Paulo, Sudeste do Brasil.
Segundo Sales, “eles estão tentando nos atingir. Eu não me preocupo. Eu tenho contrato privado” com empresas internacionais. “Nós cumprimos o que está compactuado no contrato, e é isso que a gente cumpre. Vou te dar um exemplo: até o ano cinco, que é o ano de 2015, nós já fizemos investimentos de mais de R$ 1 milhão no projeto. A lei brasileira nos dá mecanismos para tirar todos os posseiros de áreas privadas, mas nós nunca fizemos isso lá”, esclarece, ao completar que já recebeu várias propostas para vender a área florestal que possui.
Normando afirmou que não houve, nos últimos anos, nenhuma autorização de derrubada. “Todas as derrubadas que aconteceram foram ilegais”. Ele esclareceu também que a cada 60 dias há um “monitoramento aéreo e que nunca foi recebido nenhum apoio financeiro do estado para isso. É a lei brasileira que não permite nenhuma derrubada ilegal. Essa história de fiscalização não é tudo. Tem ingerências políticas para prejudicar o projeto. Falta conscientização das pessoas”, garante o empresário.
“Nunca privei ninguém. Nunca fui acionado na Justiça. Eles [os posseiros] já foram orientados a me colocar na Justiça. Eu visito o meu projeto. Eu me atenho basicamente ao que é meu. Mas já promovemos inúmeros cursos. Já contratamos profissionais de respeito. Já fizemos um ‘saúde itinerante’ lá dentro do projeto, no Itatinga, e isso foi noticiado pela imprensa. Nós temos ações rotineiras lá”, finaliza.
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