A proposta de vender créditos de carbono, desenvolvida oficialmente no Acre desde 2010, através do Sistema de Incentivos a Serviços Ambientais (Sisa), é uma das práticas mais criticadas entre especialistas da área. Tema de pesquisa científica, e até levantamentos internacionais, realizados por instituições renomadas, o Acre passa de protagonista de bons projetos sustentáveis, a ator principal de ideias que podem estar desrespeitando os direitos humanos e à terra.
João Renato Jácome
O governo do Acre participa da 21ª Conferência do Clima (COP 21), promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU). O evento, que acontece em Paris, na França, reúne representantes de mais de 195 países, entre eles o Brasil. Considerado uma referência mundial na implementação de políticas vinculadas ao clima, os representantes do estado acreano devem participar de uma discussão sobre o comércio de créditos de carbono, desenvolvido pelo Acre desde 2010.
A chamada “economia verde” implementada no estado do Acre é vista como uma experiência que harmoniza dois pilares essenciais para o sucesso da política pública: crescimento econômico e conservação ambiental. Atualmente, o departamento segue as diretrizes do programa que busca a Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação (Redd), considerado o modelo de execução mais avançado do mundo: o Sistema de Incentivos a Serviços Ambientais (Sisa).
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É bom deixar claro que foi a partir dos anos 2000 que entrou em cena um mercado voltado para a criação de projetos de redução da emissão dos gases que aceleram o processo de aquecimento do planeta. Hoje chamado de “mercado de carbono”, a modalidade comercial está prevista no Protocolo de Quioto, um acordo internacional que estabeleceu que os países desenvolvidos deveriam reduzir, entre 2008 e 2012, suas emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE), em média, 5,2%, quando comparados aos dados obtidos em 1990.
Veja como funciona o Mercado de Carbono
Segundo o Ministério do Meio Ambiente (MMA), o Protocolo de Quioto criou o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), que prevê a redução certificada das emissões. Uma vez conquistada essa certificação, quem promove a redução da emissão de gases poluentes tem direito a créditos de carbono e pode comercializá-los com os países que têm metas a cumprir. E foi justamente sobre isso que o ambientalista austríaco, Michael Schmidlehner, conversou com o ac24horas.
“Os projetos Purus, Valparaiso e Russas, no Acre, são projetos REDD-plus privados, promovidos pela empresa estadunidense CarbonCO LLC. O Projeto Purus foi certificado por duas certificadoras internacionais: VCS [Verified Carbon Standard] e CCBS [Climate Community and Biodiversity Standards], neste último caso, até com “Distinção Ouro”. O projeto já emitiu e vendeu certificados de carbono para eventos como a Copa do Mundo de 2014 [que ocorreu no Brasil], supostamente contribuindo para a neutralidade de carbono do evento”, revelou o professor universitário.
Mas, segundo conta Michael, a realidade flagrada por pesquisadores da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DhESCA), no interior do Acre, não foi a mesma divulgada pelo governo petista de Sebastião Viana. “A missão revelou graves violações dos direitos básicos das comunidades residentes”, lembrou.
O fato é que a proposta adotada pelo governo do Acre não deixa de agradar apenas especialistas da área ambiental. Para se ter uma ideia do quão polêmica é a proposta acreana, até o papa Francisco, líder mundial da Igreja Católica, já teceu críticas sobre a temática que envolve mais de 195 países. Para o religioso, o comércio de emissões pode ser considerado uma solução regada à “especulação”, e pode, ainda, “minar os esforços globais para reduzir as emissões de gases do efeito estufa”.
Uma reportagem da Agência Reuters, de Londres, na Inglaterra, destacou que o papa fez um apelo urgente para que os países atuem no combate à mudança climática num documento, material que ele quer que seja parte do debate da cúpula climática da Organização das Nações Unidas (ONU), exatamente o evento em que o Acre, não por acaso, participa. E o pedido do padre foi aceito.
Francisco acredita que “este sistema parece proporcionar uma solução rápida e fácil sob a aparência de um certo comprometimento com o meio-ambiente, mas de forma nenhuma permite a mudança radical que as atuais circunstâncias exigem”. Há quase dois anos o papa vem conversando com várias pessoas, incluindo o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, sobre a questão da mudança climática.
O economista-chefe do Instituto Potsdam de Pesquisa Sobre Impacto Climático e consultor do Vaticano durante a elaboração da encíclica, Ottmar Edenhofer, disse que os comentários de Francisco não devem ser vistos como uma rejeição cabal do comércio de emissões. “O papa está mais ou menos pedindo aos cientistas que verifiquem se este é um instrumento que irá fornecer uma solução”, afirmou ele à Reuters.
A redução de emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) é medida em toneladas de dióxido de carbono equivalente – t CO2e (equivalente). Cada tonelada de CO2e reduzida ou removida da atmosfera corresponde a uma unidade emitida pelo Conselho Executivo do MDL, denominada de Redução Certificada de Emissão (RCE).
Cada tonelada de CO2 equivale a 1 crédito de carbono. A idéia do MDL é que cada tonelada de CO2 e não emitida ou retirada da atmosfera por um país em desenvolvimento possa ser negociada no mercado mundial por meio de Certificados de Emissões Reduzidas (CER).
As nações que não conseguirem (ou não desejarem) reduzir suas emissões poderão comprar os CER em países em desenvolvimento e usá-los para cumprir suas obrigações.
O governo federal do Brasil, através do Ministério do Meio Ambiente (MMA), poderá não reconhecer a comercialização de créditos de carbono que o Instituto de Mudanças Climáticas (IMC) do Acre realizada desde o ano de 2010. A contribuição do Brasil para os debates que acorrem durante a 21ª Conferência do Clima (COP 21) deixa bem claro quais comercializações serão reconhecidas pela instituição. O fato levantou uma séria de novas críticas ao projeto desenvolvido pelo governo acreano.
“O Governo brasileiro enfatiza que quaisquer transferências de unidades provenientes de resultados de mitigação alcançados no território brasileiro serão sujeitas ao consentimento prévio e formal do Governo Federal. O Brasil não reconhecerá o uso por outras Partes de quaisquer unidades provenientes de resultados de mitigação alcançados no território brasileiro que forem adquiridas por meio de qualquer mecanismo, instrumento ou arranjo que não tenha sido estabelecido sob a Convenção, seu Protocolo de Quioto ou seu acordo de Paris”, diz o documento disponibilizado pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil (MRE), ao ac24horas.
Confira a integra do documento
Um caso de venda ilegal de créditos de carbono, ocorrido em Rondônia, chamou a atenção da Advocacia-Geral da União (AGU). O órgão federal ajuizou ação na Justiça para pedir a anulação de contrato entre a empresa irlandesa Celestial Green Ventures PLC e a Associação Indígena Awo “Xo” Hwara, firmado para a venda de créditos de carbono em terras indígenas em Rondônia (RO), sem intervenção ou autorização da União ou da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Segundo as unidades da AGU, a suspensão do contrato foi necessária para impedir a biopirataria e evitar prejuízos ao ecossistema e à biodiversidade local. A ação pediu que os envolvidos sejam proibidos de efetuar e/ou receber qualquer pagamento relacionado ao acordo. A Advocacia-Geral pede ainda a anulação do contrato firmado e a proibição da empresa estrangeira de negociar quaisquer direitos sobre o usufruto de terras indígenas em qualquer lugar do território nacional.
O contrato foi firmado pela empresa que não possui cadastro regular no país e com a associação que supostamente representa os índios que habitam nas terras de Igarapé Lage, Rio Negro-Ocaia e Igarapé Ribeirão, no Estado de Rondônia, como se esta fosse proprietária dos terrenos que pertencem à União. A área possui 259.248,3 hectares.
Pelo acordo, a Celestial Green Ventures PLC pagaria pouco mais de US$ 13 milhões à associação e, em troca, receberia, por 30 anos, todos os direitos sobre os créditos de carbono que venham a ser obtidos através da biodiversidade das terras indígenas, que estão demarcadas e homologadas, na forma do Decreto 86.347/81.
Outra cláusula do contrato permite que a empresa tenha acesso irrestrito a toda área, podendo realizar qualquer obra ou atividade nesta área, sendo necessária autorização dela para intervenções externas, como a entrada dos próprios índios nas regiões destinadas exclusivamente a esses povos. Um fato semelhante ocorreu em território acreano. Isso, a próxima reportagem vai contar com detalhes, apresentando, inclusive, entrevistas já concedidas por moradores de ares em que são desenvolvidos projetos ligados à baixa emissão de carbono.
Em 2009, o então governador do Acre, Binho Marques (PT), viajou aos Estados Unidos da América (EUA), onde, juntamente com governantes de outros oito estados, tanto dos EUA, quanto do Brasil e da Indonésia – que juntos reúnem mais de 50% das florestas do mundo- fez uma apresentação sobre os projetos de proteção das florestas acreanas.
Ao discorrer sobre as políticas públicas que o governo acreano estava, à época, implementando, Binho Marques destacou, no estado da Califórnia, a conscientização do povo acreano pela preservação da floresta.
“Dez anos atrás, povo acreano fez opção por um projeto de governo declaradamente voltado para a valorização da floresta e a construção de um projeto de desenvolvimento sustentado. Hoje já colhemos os primeiros resultados dessa decisão popular. Melhoramos nossos indicadores sociais – e me permitam apenas um exemplo: nestes dez anos, saímos do último lugar entre os 27 estados brasileiros para ficar entre os 10 melhores colocados no ranking do Ministério da Educação. Buscando qualidade de vida para os povos da floresta, elegemos a proteção e o uso inteligente da floresta como o desafio fundamental”, disse Marques aos participantes da 2ª Conferência de Governadores sobre Clima Global 2009.
Junto aos demais governadores de estados da Amazônia, o ex-governador do Acre participou de um dos painéis mais esperados do encontro, que encerrou o evento, abordando o tema “Soluções para a Floresta: Protegendo o Pulmão do Mundo”, relatou a imprensa na época.
Para o pesquisador Michael Schmidlehner, o fato do Acre ser um dos membros fundadores da Força Tarefa de Governadores para o Clima e Florestas (GCF), criada sob o então governador da Califórnia Arnold Schwarzenegger, em 2009, retrata uma série de problemas, situações que geralmente não são percebidas.
“A GCF promove o REDD subnacional. A ideia é que estados ou províncias membros do GCF adotem normas jurídicas que lhes permitem estabelecer um mercado de carbono florestal regulamentado entre eles. Há vários problemas com esta abordagem. Muitas questões técnicas como a medição de carbono, adicionalidade, o “vazamento”, e “permanência” são muito difíceis – na verdade, impossível- de enfrentar a nível subnacional”, classificou o especialista.
A postura do governo do Acre chamou atenção de instituições internacionais que pautam debates sobre o assunto. Até o governo da Califórnia, nesta semana, manifestou receio com as políticas públicos desenvolvidas no território acreano. O epicentro das discussões ocorrera após as medidas nacionais anunciadas pelo Brasil na semana passada, o que frustrou os planos da Califórnia e outros territórios dos Estados Unidos de comprar créditos de compensação de carbono florestal do Acre e outros estados da Amazônia brasileira.
No dia 27 de novembro, o Brasil publicou um decreto oficial, assinado pela presidente Dilma Rousseff, que estabelece o marco nacionais para a Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação de florestas (conhecida pela sigla REDD+), no qual declara que “pagamentos por resultados REDD+ e seus respectivos diplomas não poderão ser utilizados, direta ou indiretamente, para cumprimento de compromissos de mitigação de outros países perante a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (CQNUMC)”; e que tais títulos “não gerarão direitos ou créditos de qualquer natureza”. É exatamente o que a carta de posicionamento da União, encaminhada pelo Ministério das Relações Exteriores, já havia antecipado ao ac24horas.
A decisão do Brasil de proibir a venda de créditos internacionais de REDD+ antes da 21a Conferencia da Partes (COP) das nações Unidas sobre Mudanças Climáticas é um claro rechaço às aspirações de alguns países do Norte e de especuladores de carbono de colocar a maior zona de floresta tropical do mundo num mercado de carbono mundial.
Para a Amigos da Terra Internacional, a maior rede de organizações ambientalistas de base do mundo, a decisão do Brasil fortalece os esforços da sociedade civil e dos movimentos sociais em rejeitar os mercados de carbono, a compensação de emissões por REDD+ e outros meios através dos quais os governos do Norte, tendo como exemplo o Acre, pretendem evadir sua responsabilidade histórica com as mudanças climáticas.
A compensação de emissões de carbono, ou offset, [também chamada de permissão para poluir], é amplamente considerada como uma brecha para os poluidores, ao invés de ser uma forma legítima de redução de emissões. Além disso, leva à financerização da natureza e a violações de direitos humanos, enquanto a carga injusta de compensar emissões recai sobre os povos que dependem das florestas, considera a instituição. O entendimento é bastante similar ao do para Francisco, citado no início da reportagem.
“Os países industrializados necessitam sim apoiar os países do Sul para evitar o desmatamento e para adaptar-se às mudanças climáticas catastróficas, mas os mercados de carbono são uma fonte injusta e não confiável de financiamento para satisfazer essa necessidade”, afirma Jeff Conant, campanhista pelas Florestas de Amigos da Terra, nos Estados Unidos.
O anúncio teve lugar enquanto o Departamento de Recursos Atmosféricos da Califórnia está a ponto de incluir a compensação por REDD+ do estado do Acre e outras jurisdições em seu programa de limites máximos e comércio como forma de cumprir com as metas de redução de emissões mediante a compra de créditos do exterior. Muitas organizações ambientalistas e de justiça ambiental da Califórnia se opõem firmemente a essa ideia.
Conant acrescentou: “Ao frustrar as esperanças da Califórnia de ampliar seu mercado de carbono, esperamos que o anuncio do Brasil aumente a pressão para que o estado adote medidas reais para realizar a transição da sua economia baseada em combustíveis fósseis e também para evitar a destruição das florestas mediante a redução do consumo de petróleo, óleo de palma e outras commodities que destroem a Amazônia”.
“Esta medida é coerente com o que o Governo Brasileiro tem expressado em diálogo com organizações da sociedade civil e responde às nossas preocupações sobre a possibilidade de dupla contabilidade de carbono na contribuição nacional pretendida apresentada pelo Brasil a CQNUMC”, afirmou Lucia Ortiz de Amigos da Terra Brasil, organização membro da coalizão nacional Grupo Carta de Belém.
“Assim mesmo, em nível nacional seguiremos lutando contra os mercados de carbono e os mecanismos de compensação florestal, como aquele criado pelo Código Florestal de 2012. As compensações de carbono florestal permitem o múltiplo pagamento e a geração títulos especulativos sobre uma mesma área de floresta natural, o financiamento da expansão de plantações industriais de árvores e o aumento dos preços de terra, e assim dos conflitos por território na Amazônia, enquanto a construção de grandes barragens e a exploração de petróleo continuam contribuindo para a destruição da região e do clima global”, sustentou Ortiz.
“Os mercados de carbono, REDD+, a compensação de biodiversidade e outras falsas soluciones não contribuem para combater as mudanças climáticas nem para proteger os povos que vivem nas florestas. Ao contrário, beneficiam os contaminadores e provocam conflitos territoriais”, acrescentou Isaac Rojas, coordenador do Programa de Florestas e Biodiversidade de Amigos da Terra Internacional.
“Já é tempo voltar a colocar a gestão das florestas nas mãos das comunidades que tem gerido seus territórios de maneira sustentável durante gerações”, afirmou Rojas. “As falsas soluções como REDD+ provocam danos incalculáveis. O manejo comunitário das florestas é um conjunto de metodologias que representa séculos de sabedoria de trabalho coma natureza. É bom para o clima, a biodiversidade e as pessoas”.
Procurado para esclarecer as denúncias relatadas durante a série, o governo do estado, através do Instituto de Mudanças Climáticas (IMC), informou, através de nota, que o poder público acreano está “preocupado com o aquecimento do planeta e seus efeitos decorrentes da perda de florestas”, por isso, realizará um dia alusivo ao estado, numa atividade paralela à agenda da COP 21, que ocorre em Paris.
Além disso, o IMC garantiu que o Acre mantém “87% de sua cobertura florestal original”, e que, desde 1999,” vem implementando políticas socioambientais que contribuem para a queda do desmatamento”, entre elas o Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) que tem se “destacado como uma das principais ferramentas utilizadas para orientar as políticas públicas da Amazônia, definindo as potencialidades e fragilidades do território”.
Os órgãos de governo não confrontaram as denúncias dos especialistas, nem informou quais projetos de crédito de carbono estão sendo desenvolvidos nas florestas do Acre, ou aguardam aprovação para início de execução. O governo também não confrontou a posição do governo federal, que pode, a qualquer momento, proibir a comercialização internacional dos créditos, nos estados brasileiros.
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