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0 paneiro e o mar

Por
Roberto Vaz

*Por João Correia lima


Em meados de 1971, o Presidente dos EUA, Richard Nixon, iniciou sua Guerra Às Drogas e colocou o mundo inteiro em sua empreitada. A única voz dissonante de peso foi a de um intelectual importante, bem conhecido, o Nobel de Economia, Milton Friedman, que foi profético ao descrever, com a potência de seu espírito, o devir da medida e sua repercussão no mundo inteiro. Por sua vez, os sucessivos Governos do Brasil, sem exceção, não reuniram capacidade analítica suficiente e preferiram macaquear a decisão ianque, longe da percepção de quão danosa ela seria para a sociedade brasileira. Sem medo de errar, arrisco-me a dizer que fomos e somos, dentre todas as nações do planeta, de muito longe, os maiores prejudicados pela medida discricionária de Nixon.


A geografia, a economia, o tamanho da população, a incúria do aparato repressivo ( policial e judiciário ) e a indiferença letárgica da Sociedade Civil do Brasil transformariam a luta contra as drogas na mais desastrosa tragédia vivenciada nestas plagas.


O Brasil conta com perto de 18 mil Km de fronteiras internas com os países sul-americanos, nas áreas mais despovoadas, precisamente onde florescem os maiores produtores mundiais de cocaína ( Peru, Bolívia, Colômbia e Venezuela ) e um grande produtor de maconha ( Paraguai ). Nem é preciso insistir que as fronteiras brasileiras são os Jardins do Édem dos traficantes de todos os tipos e matizes, já que guarnecidas por insignificantes forças de segurança, em quantidade e estrutura – verdadeiro Exército Brancaleone – a confrontar forças bem superiores em efetivo, domínio do terreno, armamentos, vibrando o poderoso apelo e a motivação oferecidos pela posse de dinheiro. Por infortúnio, esta situação transforma o Brasil numa das principais mega rotas do narcotráfico internacional, além, é óbvio, do suprimento bilionário do segundo maios mercado das Américas, dos maiores do mundo.


É bem verdade que, comparativamente aos gigantes produtores de entorpecentes mencionados, a produção brasileira de drogas é pouco significativa, embora nossa petroquímica avançada seja bastante utilizada para o refino e aprimoramento dos produtos finais. A pujança da economia brasileira, por sua vez, torna os brasileiros os maiores consumidores de drogas na América Latina. Figuramos, por exemplo, como o segundo maior mercado consumidor mundial de cocaína, atrás apenas dos americanos do norte.


Mas estas são apenas causas remotas de nossa tragédia; seu desfecho final corporifica-se no assassinato bestial de quase sessenta mil brasileiros, todos os anos, em sua quase totalidade jovens pós-adolescentes, pobres, de baixa escolaridade e do sexo masculino. Este tenebroso volume de homicídios supera as mortes ocorridas anualmente em cada uma das guerras atuais, tomadas individualmente, ou seja: mata-se mais no Brasil do que na Síria; mata-se mais no Brasil do que no Iraque, no Afeganistão, no Estado Islâmico etc.


Haverá alguma correlação direta entre os homicídios dolosos diários praticados no Brasil e o narcotráfico? Há correlação, sim. Não é de 100%, mas é elevadíssima, situa-se em torno dos 60% ( Globo.com ). Sessenta por cento de correlação direta. Estamos falando de homicídios dolosos, assassinatos, e não de outros crimes, de menor gravidade, que abarrotam a lixeira de nossos presídios ( roubos, furtos, consumo de drogas, tráfico de drogas etc ) ao narcotráfico vinculados e que turbinam a demanda por vagas no sistema prisional do Brasil. Guerra civil camuflada.


O infortúnio insustentável da tragédia brasileira – uma feroz guerra civil não declarada- repousa em muitos pilares. Dentre eles, são dignos de menção:


a) uma legislação ruim, confusa, que não explicita claramente onde termina o usuário e começa o traficante de entorpecentes. Esta ambigüidade deixa ao delegado e ao juiz o poder arbitrário de discernir entre um e outro, remetendo para a subjetividade valorativa destas autoridades o destino de privar ou não da liberdade o portador de quantidades dadas de entorpecentes;


b) um certo atavismo doutrinário que acomete os bacharéis em direito (faculdades, cursinhos, especializações, concursos ), aliado à diferenciação econômico-social obtida por seus misteres, que transforma delegados de polícia, juízes, promotores, dentre outros, em ” guardiões da sociedade saudável” e se lhes entrega uma compulsão voluptuosa em prender pessoas. Talvez o maior exemplo deste fato seja o avassalador número de prisões ilegais, sem paralelo em qualquer país que possa chamar-se de democrático, que entulha as penitenciárias de prisioneiros, sem julgamento, ao arrepio do mais comezinho processo legal: são os cidadãos de quinta categoria, são os párias dos ” provisórios”;


c) mas a mãe desta terrível e humilhante anomalia a sustentar e amplificar nossa tragédia é a amaldiçoada da impunidade. Dos quase sessenta mil homicídios dolosos praticados no Brasil apenas uma pequena parte ( em torno de três mil deles ) é desvendada pela polícia e levada a julgamento pelo judiciário brasileiro. São míseros cinco por cento, ou seja: de cada vinte homicidas no Brasil apenas um deles é conhecido e processado. Os outros dezenove ficam inteiramente seguros e tirando ” sarro” das autoridades e das famílias dos mortos. Jamais serão identificados; ficarão calmos e serenos, pois ninguém lhes estorvará. No Brasil, a vida é fácil e barata, tal qual falou o General Westmoreland sobre os vietnamitas durante a guerra. Quando a polícia chega à autoria do homicídio, faz o inquérito bem feito e o promotor oferece a denúncia, o julgamento, em júri popular, demora de 8 a 10 anos para ser feito. Esta é a média. Por estes números, matar seres humanos no Brasil é altamente compensador. A sentença moral: ” não matarás” é um mero detalhe de história de Trancoso, de conto de fadas.


Será assim em todo lugar? Decerto que não. Nos EUA , mais do que os minguados cinco por cento, sessenta e cinco por cento dos crimes de homicídio são desvendados e julgados, enquanto na Grã-Bretanha este número atinge a noventa por cento, isto é, de cada vinte homicidas, o Brasil desvenda e julga um, os EUA desvendam e julgam treze e a Grã-Bretanha desvenda e julga dezoito criminosos.


Deixai toda esperança ó vós que entrais.


A famosa frase, acima, da Divina Comédia, do poeta italiano Dante Alighieri no umbral do Inferno ( uma das três partes da maravilhosa obra ), parece mais adequada ao sistema prisional do Brasil. Em vários aspectos, no entanto, a bestialidade da barbárie cometida em diversos presídios locais ultrapassa os vates da inspiração do poeta. Talvez porquê não dê para rimar. Como se pode versejar, por exemplo, num jogo de futebol entre detentos vivos cujas pelotas utilizadas foram diversas cabeças decepadas dos corpos de detentos sacrificados, como em Urso Branco? Ficarei apenas neste exemplo. O crime organizado comanda vários segmentos da vida cotidiana nacional. O estado maior das várias facções dividem-se entre os presídios e os morros, periferias e áreas nobres, nas metrópoles e no interior, de modo a dispor todo o seu oficialato e soldadesca na prestação da oferta de narcóticos, suprindo a demanda da sociedade, somando bilhões e bilhões de reais. É um monumental negócio, tendente a crescer ininterruptamente.


Os ” provisórios “- na verdade em prisão preventiva, sem julgamento – somam quase quarenta por cento dos presidiários no Brasil. Por transgressores que sejam ( especialmente os usuários ), eles estão distantes do alto índice de perversidade que caracteriza o comum de homicidas e latrocidas. Não é raro encontrá-los ” sem passagem”, ou seja, primários. Ao adentrarem os presídios, não têm outra alternativa que não a de se transformarem em lobos, figurando numa das alcatéias cujos chefes graduados lhes tomam irmãs e esposas como escravas sexuais, para variar o sexo com as garotas de programa, nas visitas íntimas. Saem feras humanas; treinadas na universidade do crime. O Brasil é o quarto país em número de detentos. Perde apenas para a China, EUA e Rússia. Nenhum dos três países, todavia, possui superlotação de prisioneiros. Tenho cá para mim que se fossem executados os mandados de prisão já expedidos pelos juízes brasileiros e não cumpridos já disputaríamos a segunda colocação no planeta.


O Brasil tem a polícia que mais mata no mundo…


O Brasil tem a polícia que mais morre no mundo…
Ou o efeito tostines: a polícia do Brasil mata para não morrer ou morre para não matar? A letargia da sociedade do Brasil decanta um produto nefasto. De um lado, há os que execram os criminosos e, de outro, os que odeiam a polícia. Fazem, em meu ver, um grande desserviço ao país, pois impedem que a luz salpique este debate que ainda nem iniciou, eternizando um ” status quo” que nos rebaixa enquanto nação. É necessário evitar as brumas da simplificação para enfrentar o maior problema brasileiro, com êxito. Isto durará longos anos, se houver clarividência.


João Correia, 61 anos, economista; Professor da Ufac desde 1978. Pós graduado no NAEA e UFRRJ; coordenador da CEPA, no  Governo Joaquim Macedo ( 1979- 82 ), ; Pró-Reitor de Extensão, administração Sansão Ribeiro ( 1988- 91 ), ;  Deputado Estadual ( 19991- 2002 ); Deputado Federal ( 2003- 2006 ); Professor da Ufac ( 2007 aos dia de hoje )


 


 


 


 


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