*Por Moisés Diniz
No início de 2015, municípios inteiros do Acre foram engolidos pelas águas. Como se fossem seres humanos, as águas despejaram toda a sua violência sobre os acreanos de Brasileia, de Xapuri, de Tarauacá e de Rio Branco.
Casas foram destruídas, soterradas pela lama. Mercadorias e eletrodomésticos extraviados. Os prejuízos são incalculáveis. O sofrimento da população foi intenso, tão imenso, que não cabe aqui num artigo de jornal.
Políticos e estudiosos começam a olhar para a alagação como um fenômeno novo, do ponto de vista da intermitência, da intensidade e da fúria, que não se via em enchentes anteriores.
Como um metal líquido impertinente, as águas do rio Acre estão deixando uma terra arrasada, uma economia destroçada (em tempos de ajuste fiscal e dificuldades econômicas) e muitas interrogações sobre o que deve ser feito para proteger a nossa população e os seus bens.
Já há quem defenda a transposição completa da cidade de Brasileia para lugares mais altos, o que demandaria investimentos astronômicos, em tempos de retração da economia. Imaginemos a logística e o custo de construir uma nova cidade, apenas Brasileia, a sexta mais populosa do Acre.
A última alagação nos levaria a incluir Xapuri e Tarauacá nessa transposição, pelo alcance geográfico das águas nas duas cidades, pela magnitude e pelos estragos. Ocorre que, como comparação, Rio Branco teve três Brasileia debaixo das águas, com cerca de sessenta mil pessoas atingidas pela fúria do rio Acre.
Portanto, parece-nos que o caminho da transposição de cidades, pelo custo imponderável e pelo tempo, deve cuidar de apenas uma parte das cidades, as áreas mais críticas, muito baixas e próximas dos rios. Basta lembrar que, se não existisse a Cidade do Povo, teria havido o dobro de famílias desabrigadas em Rio Branco.
Outras regiões das cidades que alagaram, numa proporção menor, podem ser organizadas para enfrentar as alagações que virão anualmente. Setores urbanos de classe média podem construir condições para o enfrentamento das águas, evitando perdas de bens, a partir de ações preventivas, discutidas a seguir, sem pretensão acadêmica.
Não é possível entender uma sociedade que não consegue, durante 360 dias, se preparar para enfrentar dez dias de águas altas, a partir da dura experiência e do sofrimento da alagação. Se entendermos que estamos nos tornando a sociedade das águas, poderemos construir esse novo futuro juntos.
Iniciemos ancorando nosso tema na questão da BR 364. Mesmo que o governo federal assegure a sua elevação, o que nos garante que não possa vir uma alagação superior à que vivemos no ano passado, cobrindo as novas estruturas de elevação? Quem acreditaria que viveríamos, em Brasileia, uma alagação de 2014 (15,46 m) maior e mais violenta do que a de 2012 (14,77 m)?
Por isso, acreditamos que o assunto é mais complexo, exige mais tempo e mais dedicação para construir as primeiras respostas, mais gente debatendo e mais especialistas sendo ouvidos. Pode ocorrer que as soluções mais duradouras sejam mais exigentes do que estamos pensando.
Talvez, a sociedade das águas tenha que exigir a presença permanente de destacamentos da Marinha do Brasil nas regiões aonde os grandes rios acreanos cruzam as nossas maiores cidades. Homens treinados e equipamentos adequados para situações como essa que estamos vivendo.
Quem sabe, o nosso caminho de abastecimento possa vir pela estrada que construímos para levar riquezas. Se o que aconteceu com o rio Acre ocorrer com o Madeira, a estrada dos Andes pode nos conectar com um novo mundo de produtos e serviços, capaz, inclusive, de nos ofertar combustível e energia mais baratos.
Pode ser que descubramos que vale a pena pensar em construir grandes galpões, em regiões altas (próximas às áreas que alagam), para abrigar eletrodomésticos e mercadorias, nesses momentos de angústia das famílias e dos comerciantes.
Então a nossa bancada federal ajudará a dotar o nosso heroico Corpo de Bombeiros de caminhões baús e de barcos para transporte que, aliados aos novos galpões, eliminariam o principal desespero das famílias nas alagações: a perda de bens, por falta de transporte adequado e lugares próximos e seguros para guardá-los.
De repente, nossos prefeitos comecem a achar que está na hora de ter Defesas Civis permanentes, constituídas de homens e mulheres treinados, equipados, com um corpo técnico ativo e um contingente de reserva, que seria convocado e remunerado durante os períodos de ação nas águas.
E, como simbologia do detalhe, representando as pequenas e decisivas mudanças em nosso jeito de viver na Amazônia, as famílias pensem em instalar tomadas mais altas em suas casas (nos lugares de alagação média), capazes de escapar do contato letal com as águas. E a Eletrobrás avalie melhor a altura dos medidores de energia e pense numa solução para os cipoais em que se tornam os rabichos na periferia.
Todavia, podemos olhar mais além, para nossos filhos e netos e criarmos coragem de decidir que, nos próximos dez anos, iremos investir no desassoreamento dos rios mais danificados, aonde os municípios atingiram índices superiores a 30% de desmatamento. Observe que foi nesses municípios que a alagação foi mais violenta, mais destrutiva e histórica.
Assim, cabe com urgência e sem debate filosófico ou político, iniciar um vigoroso e organizado processo de reflorestamento da massa ciliar de nossos rios. Milhares de árvores devem ser plantadas nas encostas dos rios acreanos que cortam nossas cidades. Fora disso, todas as outras políticas, embora necessárias, são complementares.
Que os nossos políticos tenham o espírito aberto para liderar e construir as condições de sobrevivência dessa nova sociedade das águas, resiliente e com o seu mundo flexível, capaz de receber a fúria das águas e domá-las, nos ‘dez dias’ em que elas insistem em invadir casas, comércios e expulsar famílias. E não fugir delas (apenas), deixando para traz todos os nossos bens.
Por fim, nunca devemos esquecer que, como a fúria dessa terrível alagação, nós já fomos quase asfixiados pela fumaça dos incêndios. Irônico, mas, a sociedade das águas deve se preparar também para o fogo que destrói florestas, casas e plantações e a fumaça que mata.
Acho que estamos no início de uma caminhada, para entender e organizar um mundo preventivo e plástico da nova sociedade das águas. A não ser que alguém ache que, aqui na Amazônia, teremos cidades 100% livres de alagação.
É cômico, se não fosse trágico, mas, passados menos de sessenta dias, ninguém mais fala das águas e a angústia, os prejuízos e o desconforto que elas trouxeram. Agora, nossa pauta de preocupação é o verão abrasador e seus iminentes incêndios florestais.
Talvez, assim, descubramos o quanto é frágil o nosso lugar, ora inundado por águas poderosas, ora sufocado por fumaça brasileira e boliviana.
P.S. Este artigo foi escrito em homenagem, in memoriam, à Inspetora de Alunos Fátima Lima de Moura, funcionária da Secretaria de Estado de Educação, que faleceu na alagação de 2015 em Rio Branco, consequência de contato com fiação elétrica dentro d’água.
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