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A validade e o preço da fé

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Da redação ac24horas


O distanciamento que marcou a relação entre os líderes católicos e os fieis, na época em que vivi minha infância, trouxeram várias consequências. Uma delas foi ter dado mais justificativas para a proliferação das expressões religiosas alternativas que, embora justificadas em uma terminologia intitulada “crente”, deram abrigos a todos os tipos de ideologias, propósitos e interesses. Hoje, assiduamente, temos o espetáculo e a tragédia da fé.


Mas não é disso que queria falar. Não só porque é um assuntozinho chato, mas porque algo maior me interessa. Algo que me veio à mente, numa dessas tardes em que contemplava a forte chuva que caia. Memórias, revisão, saudades e muitas coisas que chegavam com os pingos fortes e frios da tempestade guardada com espanto em minha retina.


Cruzeiro do Sul também vomitou em Rio Branco nossa família: sete pessoas desarranjadas, assustadas e profundamente pobres. Da cidade que nasci – ou melhor, de onde viemos, porque o nascimento, muitas vezes, nos confina e nos prende a locais que nem sabemos ao certo qual o sentimento adequado temos – meus pais trouxeram aspectos culturais frutos dessa ausência dos mediadores católicos, dos sujeitos que ligavam a Terra ao Céu.


Presenteados por Dona Luzia, esposa de Francisco, meus avôs paternos, meus pais tinham uma pequena cruz de madeira frágil, benzida por Irmão José, um pregador que, segundo sabia, tinha andado pelos altos do Juruá, trazendo para si o papel principal do que por “lei” era reservado aos padres e bispos.


Dependurada na parede do inseguro casebre em que vivíamos no barranco do Rio Acre, aquele instrumento era usado frequentemente quando as forças da natureza se manifestavam, de forma a meter medo nos, agora, oito filhos de Deus.


O ritual era bem sério! Mesmo crianças, os seis filhos sabiam que naquele momento o sagrado faria morada nos gestos, olhares e pensamentos dos nossos pais. De uma forma ritualisticamente medieval, após ordenar que todos estivessem “colocado” uma blusa, eles se dirigiam até a janela, presa com enormes pregos giratórios, para pôr em marcha uma tradição que honestamente não faço a menor ideia de onde começou.


Abrindo-a, solenemente, segurando firme a emblemática cruz, apontavam-na para o tempo chuvoso, balbuciando coisas que não entendíamos. Ali, naquele momento, erámos testemunhas do sacro processo realizado. Olhares arregalados e altaneiros, dentro do nosso universo, imaginávamos consistir em súplicas dirigidas ao divino que seriam atendidas.
Acreditávamos naquilo! Não havia dúvida. Se parasse ou não a chuva imediatamente, isso não era importante. O alento existia porque tínhamos certeza de que eles fizeram a conexão entre nós e Deus, bem como ao fato de que ali se reproduzia um ato sagrado que comprovávamos a eficácia, sempre ao término da procela. Nem se quer o demônio seria capaz de nos explicar que a tempestade não duraria para a eternidade, e seria perder tempo ele disto tentar nos convencer.


Hoje, quando ligo a televisão, noto como as coisas estão sutis e descaradas. A construção do sagrado está nas mãos de muitos oportunistas, malandros espirituais, aproveitadores que se penduram nos pés do Cristo. Construir o sagrado é instrumento de poder e riqueza, condição social e de fama, uma falência crua das pessoas terem o direito de sentir a própria experiência.


Não resumo meu debate à fabricação de verdades e mentiras. Tampouco a dizer que a generalização é aplicada para traduzir esse mundo. Apenas me disponho a pensar que, encurralados nas novas misérias urbanas, vítimas de um mundo excludente e fantasmagórico, o povo comum é consequência midiática dos terríveis programas religiosos.


Há duas certezas dadas às pressas para todos: construir o sagrado é para poucos; praticá-lo custa muito. Esse é o mundo da mercadoria, e essas, nos temos no comércio, não nas igrejas.


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