O lamentável episódio ocorrido em Paris na última semana abalou o mundo, uniu líderes mundiais e conglomerou milhões de pessoas em repúdio ao assassinato de doze pessoas. O que há de diferente nele?
Olhando na fria matemática da morte, os atentados de Londres e Madri mataram muito mais seres humanos. Nem falar do de Nova Iorque e de tantos outros bem mais sanguinários que o da França.
Há uma inflexão importante a fazer, no justo momento em que nos afastamos da frágil muralha da verdade virtual que os meios televisivos, por viverem o pontual e o súbito, tentam construir e lançar para nós.
A história nos alerta que esse país poderoso, a França, foi palco de profundas transformações sociais. Nas palavras de Eric J. Hobsbawn, essas mudanças foram capazes de fornecer variados vocábulos para a sociedade moderna.
A Revolução Francesa encontra sua maior expressão na intensa crítica ao Estado, representado por tiranos absolutos que imaginavam ter, em sua forma, a própria paisagem do mandar. Essa conjunção de capricho e ordem pública deveria se espraiar por todos os seguimentos da sociedade.
Tínhamos a personalização do poder, cuja constituição se tornava inaceitável. Era preciso levar à forca os acólitos da frase “O Estado sou eu.” Isso porque essa assertiva, bem mais que traduzir o poderio do mandatário, afirmava, em tons reais, que ele e somente ele tinha o direito de se afirmar.
Era visível que isso não demoraria muito tempo! Mas de que ninguém, os franceses sabem e pagaram o preço por não ter o direito de expressão. Direito este que se assenta e se confunde com o próprio princípio da liberdade.
A França travou severos conflitos ao longo de sua vida. Freou os mulçumanos na Batalha de Poitiers, foi teatro de sucessivas e centenárias investidas dos ingleses, e amargou a artilharia pesada de Hitler no tenebroso inverno europeu.
Essa belicosidade não poderia aquartelar-se ou manchar-se apenas nas fardas de seus soldados. O povo francês traz muito desse espirito e sempre irá se levantar contra qualquer força que chantageie o que para eles é e deve ser um signo sagrado: o direito de se dizer o que pensa.
O Brasil precisa se espelhar nisso. Somos ainda um país muito novo, temos avanços, não há negar. Mas ainda nos falta um pouco dessa sedimentação na vida cotidiana de que o Estado não pode nos calar por mero capricho dos que alugam o poder.
Foram séculos de opressão, de monarcas bundas lisas a ditadores psicopatas. Legitimados pela própria ordem que construíram, solidificaram a falsa crença de que as verdades devem ser produzidas por eles.
Precisamos ter uma imprensa livre! Não somos um Sudão, mas ainda guardamos velharias de tempos imemoriais, aromas de imperativos que reprimiam a fala. Repudiando o que ocorrera em Paris, saibamos que não se tenta matar a expressão apenas com fuzis.
A tentativa de que a revista Veja não publicasse uma matéria no fim do ano passado é um dentre muitos sinais desse liame que ainda liga o ontem e o hoje da mordaça inconsequente.
A justiça, num ato glorioso e extremamente sensato, negou esse alopro de censura, vindo de uma região política que não deveria querer a reprodução do que tanto propagou combater.
Eu, a mim me parece que exemplos como este faz a Justiça mais eficaz e revolucionária quando se afasta de pretender julgar a qualidade da imprensa e busca proteger e reparar os danos a terceiros que casualmente ela venha a produzir.
Avancemos, um dia seremos Charlie. Teremos mais veículos de comunicação livres, na completa concepção do termo. Deixaremos de confundir os leitores, que muitas vezes não sabem diferenciar se o que leem é jornal ou Diário Oficial. Deixaremos de confundir os telespectadores, que muitas vezes não sabem se assistem a jornais ou a propaganda política.
Um dia seremos Charlie!