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Lavar a Honra com Sangue: o amor para além do dever

Por
Roberto Vaz

Lavar a honra com sangue. A frase que poderia parecer anacrônica foi proferida, com pompa e circunstância, em um julgamento da violência doméstica, tanto pelo acusado como pelo defensor em alegações finais, invocando a legítima defesa. A mulher foi agredida, violentamente, porque o marido acredita que possui o direito de se vingar e o sangue seria o lenitivo a sua honra. Não pretendo discorrer sobre a Lei da Violência Doméstica e sim sobre os antecedentes desse modo de pensar, embora se possa conferir a gestão penal do sexo em Luana Gusso.


A família na forma que conhecemos nem sempre foi assim[i]. Os sujeitos se (re)uniam pelos mais diversos laços, sem a existência da monogamia. Havia pluralidade de parceiros, muitas vezes dificultando a imputação da respectiva paternidade. Os filhos, em regra, criavam-se em torno das mães sem uma preocupação relevante na figura paterna. As uniões eram, pois, de grupos: clãs.[ii] Com os gregos inicia-se uma discussão sobre o casamento, suas regras e a ética que lhe informa. Aristóteles, Hierocles, Sêneca, Plutarco, dentre outros, dispensaram obras inteiras nessa discussão, sugerindo a autonomia de uma “ética do casamento”. Emerge a temática de como os companheiros deveriam se portar socialmente, já que o casamento é considerado, desde então, como uma instituição social, absolutamente necessária à construção regular de seu tecido. Para ser um bom cidadão da polis, o verdadeiro pater familia, era absolutamente necessário o casamento. Consistia em condição de possibilidade do exercício deste status social. Casar, portanto, era um dever para os gregos. Objetivava, em síntese, três finalidades: a) legitimar a prole; b) propiciar a educação conjunta dos filhos; e c) estipular a obrigação de ajudas recíprocas. Escondia, por óbvio, o escopo da coesão social decorrente da constante vigília e correção moral estabelecidas entre os membros da família.


Dito de outra forma: a família proporcionava a amálgama da coesão social: costurava seu tecido, dando-lhe a consistência. O casamento era tido, pois, como uma relação: a) dual: decorrente da conjunção de esforços, sob o controle do homem, advinda de uma inclinação natural; b) universal: apesar do casamento entre duas pessoas de sexos diferentes, a relação mantinha vínculos invisíveis com toda a sociedade, tornando os companheiros dignos representantes desta, além de honrar a descendência; c) singular: malgrado a participação de duas pessoas, após o casamento, a sociedade fazia aparecer uma nova e única individualidade social: o casal (esse andrógino fruto da — ilusão – da fusão integral).


Com a agregação da Moral Cristã, essa concepção foi mais recrudescida: agravada. O monopólio sexual, com a conjugalização das relações sexuais de forma direta e recíproca, é tratado com todo o vigor possível, emergindo o cânone sexual maior da sonegação da fruição: o sexo se legitima para procriação. Somente para procriar pode-se fazer sexo. O prazer/fruição foi mandado às favas. Michael Foucault pondera:


“A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe-se esse modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo. No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos. E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal: receberá este status e deverá pagar as sanções.”[iii]


Sempre que falo disso me pergunto quem ou em que ocasiões não se poderia fazer sexo: a) a mulher que está na menopausa; b) mulher grávida (já está grávida não pode ficar novamente); c) homossexuais; d) masturbação jamais; e) mulheres sem útero ou órgãos reprodutores; f) todos os homens sem produção de esperma ou glândulas reprodutoras; g) os que fizeram votos de castidade; h) transexuais; i) relações extraconjugais; j) mesmo o(a)s solteiro(a)s com namorado(a)s ou prostitutas/garotos de programas; l) pessoas inférteis. Por certo outros devem existir outras hipóteses.  Penso então que existe uma cláusula de adesão cristã que obriga todos os idosos — pelo menos — a não praticarem sexo: a abdicarem definitivamente ao gozo. Alugar o prazer a razão (?!) cristã. O mundo dos idosos é celibatário por compulsão da moral cristã: um mundo sem brilho. Não consigo, todavia, vislumbrar (nem de longe) a racionalidade deste mundo opaco, sem fruição. Evidentemente que o sexo não é tudo. Ele é apenas uma possibilidade de (re)encontro dos parceiros, mantendo-se sempre e sempre a dança da sedução, da conquista: do carinho recíproco. O sexo é percebido, então, como dever (de procriar) e não como fruição/prazer, com a absoluta castração do desejo. O mundo do erotismo, do prazer, da sedução e fruição é simplesmente sonegado por uma moral gregária de índole cristã. Warat chamava a sociedade que impõe esse discurso de “capador-capado”[iv] ou seja, a que simplesmente nega para si próprio o gozo/prazer, erigindo a culpa como pedra angular.


Conjugada com esta concepção, a preponderância masculina na sociedade, a falocracia, reina absoluta, inclusive no Direito[v]. O cinismo (não consigo usar outro termo) é tanto que nessa mesma moral vigora na sua plenitude a máxima masculina: Não se pode tratar a mulher como a amante, já que ela pode gostar e o marido pode se complicar. Além disso (eu adoro a desfaçatez dos meus pares): Ela é (será) a mãe dos meus filhos e não posso fazer isso com ela. Em outras palavras, o marido/homem pode ter gozo/prazer (inclusive e necessariamente fora do casamento), enquanto a mulher deve ser a figura simbólica da mãe. A supermãe: padecer no paraíso do lar; ser a princesa de seu castelo.  Quanto complexo de Édipo capado! Sem falar na igualdade feminina…


Na Grécia o adultério masculino era (formalmente) condenável. O feminino, entretanto, era reprimido com uma fúria absurda, não por respeito à liberdade da mulher, mas porque violava a moral do homem/marido traído. A razão era a violação de um homem pelo outro. A mulher não era a autora da conduta, apesar de sofrer as consequências. A mulher era objeto:  não tinha capacidade para entender sua conduta. Era o outro homem, o amante-usurpador que violara na sua ingenuidade a mãe da família.


Dando um salto histórico pode-se verificar essa realidade nas Ordenações Filipinas (Livro V, Título 28). No Tribunal do Júri e nas Varas de Violência Doméstica ainda se pode apreciar/horrorizar com estes espetáculos à moral cristã-masculina, transmitida/reproduzida (ainda) como sendo a moral social. Essas decisões desconsideram, no mínimo, o princípio da dignidade da pessoa humana presente no artigo 1º, inciso, III, da Constituição da República e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Todavia, a dogmática tradicional em nome de um respeito a autonomia do Tribunal do Júri (aqui) admite decisões inconstitucionais (!?). De fato, as decisões sob o pálio da legítima defesa da honra (excludente de ilicitude – Código Penal, art. 23), afirmam:


“O adultério é ofensa a um bem jurídico, a situação que resulta do estado de casado, fazendo surgir entre os deveres dos cônjuges o da fidelidade conjugal, cuja observância caracteriza a figura penal do delito de adultério [hoje revogado]. Exigir outra conduta do indivíduo que apanha a esposa em flagrante ato de adultério com um seu amigo, é coisa já difícil mesmo em decisões de juízes togados.” (TJSP, RJTJSP, 4/293).


Embora antigo o julgado, reproduz uma lógica não dita, mas que tocaia a compreensão de boa parte dos atores jurídicos. Silvia Pimentel e Valéria Pandjiarjian, após abordarem a construção dos Direitos Humanos das mulheres, analisam o julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferido nos autos da Apelação 137.157-3/1, em 23.02.1995, resumindo:


“Acusado que, surpreendendo a mulher em situação de adultério, mata-a juntamente com o seu acompanhante. A tese da legítima defesa da honra foi aceita por expressiva maioria do Tribunal do Júri e confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que negou provimento ao apelo do Ministério Público, mantendo a decisão do Júri. (…)”. Concluem, cobertas de razão: “Fica evidente que é a desvalorização da mulher, de sua vida, que está subjacente a decisões dessa ordem.”[vi]


Com efeito, são decisões materialmente inconstitucionais, não obstante emitidas pelo órgão formalmente designado para as proferir. Dito de outro modo: apesar do Tribunal do Júri ter competência constitucional para decidir sobre os crimes dolosos praticados contra a vida (CR, artigo 5°, inciso XXXVIII), suas decisões devem ser materialmente válidas, conforme à Constituição (Ferrajoli), não tendo, portanto, carta branca para decidir ao arrepio conforme bem entenderem, dado que o julgamento deve ser constitucional. Suas decisões, pois, devem se conformar com os limites materiais impostas pela própria Constituição (Lenio Streck).


Fica um convite à reflexão com Luis Alberto Warat, que nos deixou fisicamente e continua influenciando, para uma nova compreensão dos relacionamentos familiares. Warat lembrava de Dona Flor e Seus dois maridos[vii]. Autorizado pelo autor, desde o início de seu livro, seguirei parafraseando/copiando sem aspas, tornando a leitura mais escorreita: mais gostosa. Warat percebe em Dona Flor a heroína da poligamia dos significados e do imaginário erotizado que sobreviveu/resplandeceu frente a tantas tentativas de castração, feitas em nome de uma cultura aparentemente sem manchas. Afirma que a castração é sobretudo a poda do desejo, cabendo-nos questionar o tido por inquestionável.


Aponta em Vadinho o solto, preguiçoso, cara de pau, jogador e perdulário que vai até o fundo dessa malandra experiência que é estar vivo; sentindo-se parte desse mundo louco da razão. Já Teodoro Madureira é o meticuloso, insosso, dono de uma cultura sem surpresas, um homem que nunca sai de suas gavetas, tedioso, que pede permissão e hora para amar, dono de uma mania cartesiana de etiquetar tudo. Com Vadinho tudo pode ser misturado, o prazer surge, ressurge, renasce, mistura irresponsabilidade com desejos, fantasias, malandragem. O jogo de incertezas. Vadinho é capaz de mostrar o sentido erótico da vida, transformando o racional em fruição. Dona Flor deseja o novo, a vida em movimento. Com Teodoro Madureira a vida perde seu movimento, paralisa-se. Torna-se a univocidade de atos e de desejos, repetidos no dia-a-dia. Respeitam-se tanto que nem se relacionam e, sem mistura não há relação. Vadinho faz aparecer a necessidade/possibilidade de se desejar o novo, o desconhecido, o resgate da sedução. Invocando o carnaval, diz que talvez possamos concentrar em Vadinho o carnaval e a folia, e em Teodoro Madureira a quaresma, os dias em que nossas vidas funcionam como uma oficina de controles inúteis, mas que servem, per se para justificar sua existência e bem alimentar os que nela mandam.


Assim é que com Vadinho existe a presença constante do inesperado. Seu retorno da morte é o símbolo de como, pelo fantástico, podemos manter uma relação adúltera como real. É o marido sem o espírito da legalidade que a mulher sonha ter, para temperar a alquimia de ternura e segurança do desejo instituído. A volta de Vadinho permite a Dona Flor romper os ímpetos do desejo com o dever, aceitando o adultério como condição natural do casamento. É que não existe democracia sem marginalidade (adultério), sem uma louca cavalgada, o delírio febril, os ais do amor que vêm da experiência comum da gente, surgida nos momentos primordiais do cotidiano.


Existem coisas que se fazem e que não se pode ver”, diz Teodoro Madureira a Dona Flor, enquanto apaga a luz para amá-la. Toda uma cultura do pecado, que marca gerações desde o momento em que se concebe, a maioria de nós, filhos do segredo. Opondo Teodoro Madureira e Vadinho encontram-se definidos, para o imaginário de Dona Flor, os lugares do dever e do prazer. O prazer por prazer e por obrigação não é prazer. Warat considerava que o amor, em nossas sociedades, é burocrático e repressivo por apresentar um excesso de deveres. E o amor será um exercício democrático do prazer quando se liberar de suas proibições e inocentar o prazer realizado fora do dever. Resta ter coragem e rejeitar a lavação da honra com sangue.


Espero que o Natal tenha sido bom. Um promissor 2015, porque


Deve haver alguma coisa que ainda te emocione / Uma garota, um bom combate, um gol aos 46/ deve haver alguma coisa que ainda te emocione / um cavalo em disparada / pijamas… nada pra fazer/ deve haver alguma coisa que ainda te emocione/ um vinho tinto.. um copo d’agua / a chuva no telhado … um pôr-de-sol/ Deve haver alguma coisa que ainda te emocione… — Humberto Gessinger



[i] FOUCALT, Michael. História da Sexualidade. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

[ii] Com Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, em artigo denominado “Família e Casamento em Evolução” (Revista Brasileira de Direito de Família, nº 1, Porto Alegre: Síntese, 1999, p.9.


[iii] FOUCALT, Michael. História da Sexualidade – vol. I. Rio de Janeiro : Edições Graal, 1988, p.09-10..


[iv] WARAT, Luis Alberto. A ciência Jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul : Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul, 1985, p.18.


[v] WARAT, Luis Alberto. Por Quiem Cantan Las Sirenas. Joaçaba: UNOESC, 1996, p.108.


[vi] PIMENTEL, Sílvia; PANDJIARJIAN, Valéria. Direitos Humanos a partir de uma perspectiva de gênero. In: Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo: SP, vol.53, junho –2000, p.126.


[vii] WARAT, Luis Alberto. A ciência Jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul, 1985.
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Roberto Vaz

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