‘A simplicidade é o último grau de sofisticação’, dizia Leonardo da Vinci. Talvez essa seja a mais luminosa qualidade de Chaves, que esteja criando tanta consternação na sociedade latino-americana e ofuscando quem aprendeu a olhar o mundo a partir da sua própria sombra, achando que, por representar a sua silhueta, seja mais importante do que a luz.
O prestigiado jornal A Folha de São Paulo abriu a sua primeira página para uma estudiosa da alma humana, talvez, a dela e de seus amigos da velha academia, aonde as letras tortas e rústicas do povo não cabem no seu nobre alfabeto. O nome da moça é Sylvia Colombo e o artigo foi intitulado de “Menos Chaves, mais Cantinflas”.
Sylvia Colombo tenta construir um discurso à esquerda do sentimento popular do brasileiro que, segundo ela, é atrasado e subserviente a uma visão estereotipada da pobreza latino-americana, retratada no personagem Chaves, qualificando-o como um produto pobre, folclórico e tosco da poderosa Televisa mexicana. Em respeito ao tempo dos leitores, publico apenas um de seus parágrafos, mas, quem quiser lê-lo todo, basta acessar: http://sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br/2014/11/29/menos-chaves-mais-cantinflas/
“A equação da série Chaves é essa: os roteiros eram estúpidos, os textos, fraquíssimos, as piadas, preconceituosas e machistas _basta ver como são retratadas as mulheres no programa. Temos a menina histérica de vestido curto, a mulher mandona cheia de bobs no cabelo, ou uma mais velha, que sem rodeios é chamada de “bruxa”. Sem contar o modelo masculino (seu Madruga), um sujeito folgadão, desbocado e autoritário, a homofobia implícita de seu discurso e suas atitudes.”
Aqui reside o problema de Sylvia Colombo e de grande parte dos ‘doutores’ da alma humana, que, como o Professor Girafales, sentem enorme dificuldade em entender que os pobres, sejam latino-americanos ou africanos, podem se sentir representados por personagens que – embora simples, ‘caricatos’ até, folclóricos, rústicos, analfabetos – podem estar a alimentar esperanças sutis e utopias de todo um povo, mesmo que seus roteiros não tenham sido escritos por celebridades como Honoré de Balzac, Dostoiévski ou Charles Chaplin.
Chaves penetrou na alma latino-americana, como água numa areia pisoteada por quinhentos anos de dominação colonial e capitalista, porque o coração dos pobres nunca foi pedra. Quando precisou endurecer, em suas revoltas populares, foi carbono. Sua mensagem sempre foi simples, mas, era como se existissem conceitos subliminares, como se a filosofia estivesse a alimentar aquela linguagem tonta, infantil e ingênua de Chaves e de seus amigos, como Kiko, Seu Madruga e Chiquinha.
Chaves dormia num barril, à semelhança do filósofo Diógenes de Sínope, representante qualificado do cinismo, que também dormia num barril e andava nu e dizia que “não tinha propriedade alguma para não ser propriedade de nada”. O cinismo, como corrente filosófica, oferecia às pessoas a possibilidade de felicidade e liberdade do sofrimento em uma época de incertezas. Os cínicos não tinham nenhuma propriedade e rejeitavam todos os valores convencionais de dinheiro, fama, poder ou reputação e sua sabedoria maior consistia na ação, não apenas no pensar.
Se pedíssemos a um grupo de estudantes de filosofia para analisar o personagem criado e interpretado por Roberto Bolaños, com certeza, eles lembrariam do que estudaram sobre o cinismo de Antístenes e Diógenes e escreveriam que as máximas do cinismo filosófico aparecem nas frases toscas e tontas de Chaves e de seus amigos e no comportamento de cada cena. E diriam, também, que se assemelham, fortemente, à vida dos pobres nas periferias das grandes cidades latino-americanas.
As cenas repetitivas, que a gente já sabia que ocorreriam nos próximos minutos, sejam na figura de Chaves, de Kiko ou de Seu Madruga, lembram a tragédia de Sísifo, da mitologia grega. O mortal Sísifo que, por ter prendido a morte, recebeu o castigo eterno dos deuses: foi obrigado a rolar uma pedra morro acima, que, quando chegava no topo, despencava novamente. Albert Camus, em seu ‘O Mito de Sísifo’, diz que Sísifo, no lugar do suicídio, respondeu com a revolta aos deuses.
Há algo mais semelhante ao ‘Trabalho de Sísifo’ do que a vida de um pobre latino-americano? No ensaio que escrevi em homenagem a Chico Mendes, há um trecho que retrata com fidelidade o ‘Trabalho de Sísifo’ dos pobres da terra, aqui representado por um filho da floresta amazônica: “acordar com a madrugada, pescar uns peixes miúdos, comê-los com sal e banha na panela, ao alvorecer, agarrar-se aos instrumentos de trabalho, a enxada, a faca de seringa, o terçado, enfezar-se com mutucas, o pium, a ‘ruçara’, cipós-de-fogo, todo tipo de inseto, até inseto que mata”… Segue o texto completo em: http://www.altinomachado.com.br/2008/04/o-chico-mendes-que-eu-vi.html.
As cenas que ocorrem repetidamente na vila de Chaves estão presas a esse conceito, explicado pelos doutores da filosofia e vividos, cotidiana e desgraçadamente, pelos pobres latino-americanos. É como se Nietzsche e Allan Kardec tivessem ajudado Roberto Bolaños a escrever cada cena que se repetiu nesses 30 anos de existência. Como se quisesse dizer: teu filho viverá a mesma indecência da tua miséria humana, teus netos e teus bisnetos, num entrelaçar de vidas passadas e presentes, vivendo agora o que viveste em vidas anteriores.
Por isso, Chaves era sofisticado e simples.
Moisés Diniz é membro da Academia Acreana de Letras e autor do livro O Santo de Deus