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Email para meu futuro neto: “Na minha época, ser gay era foda. Ainda bem que isso acabou”

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De: Nathalia Ziemkiewicz
Para: Neto querido
Assunto: Amor e intolerância na minha geração


Oi, querido. Puxa, a vovó aqui não via a hora de tirar este email da pasta de Rascunhos. Faz algumas décadas que te escrevi, era uma manhã de terça-feira, dia 16 de setembro de 2014. Imagine só: seus pais nem existiam! Os carros ainda precisavam de motoristas – e eles estavam putos com a existência das ciclovias (risos). Agora você está grandinho o suficiente para entender o que a véia aqui tem para lhe contar. Quando eu tinha a sua idade, o meu avô também me explicou como era viver no início do século XX e me lembro de ter ficado chocada. Não havia luz elétrica, celular e wi-fi!!! Devia ser foda… (não conte para a sua mãe que falei palavrão). Então, na minha época, as pessoas não toleravam que uma mulher amasse outra mulher e um homem quisesse viver com outro homem. Você acredita? Pois eu JURO.


Alguns amigos meus foram expulsos de casa, até tentaram se matar por não suportarem tamanho preconceito e sofrimento. E, olha, os gays mais antigos dizem que já foi muito pior. Eu sei que pra você isso é tão normal que ninguém discute o assunto. Mas só pra você ter ideia, uma das pautas polêmicas das eleições à presidência girava em torno do casamento civil igualitário (as pesquisas indicavam que 53% dos brasileiros eram contra). Sim, meu amor, houve um tempo em que candidatos tentavam conquistar votos dos conservadores alegando que “família é homem e mulher” – e isso estava na Constituição. Quantas famílias de mãe-mãe e pai-pai são infinitamente mais amorosas que lares com mãe-pai? Tinha até uma expressão cafona que usavam para separar os héteros dos homossexuais: “cidadãos de bem” (hahaha). Péra, deixa eu te apresentar três figuras.

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O de chapinha era deputado federal Marco Feliciano, que propunha uma tal de cura gay – ãhã, sério. Algumas religiões pregam inclusive um exorcismo pra livrar fiéis da “desgraçada satânica”. Uma vez Feliciano disse: “a podridão dos sentimentos homoafetivos leva ao ódio, ao crime, à rejeição (…). Abominamos suas práticas promíscuas”. O da franjinha era o Jair Bolsonaro, outro deputado, de pérolas como “ter filho gay é falta de porrada”. Dá um Google depois pra ver o hair style dos dois, eles foram troladíssimos nas redes, tem uns memes ótimos. Nossa, só agora percebi que você teve o privilégio de não conhecê-los. O terceiro era o pastor Silas Malafaia, que considerava crime a união de duas pessoas do mesmo sexo. Daí uma gênia tirou uma selfie com ele que viralizou. Ela segurava um papel com os dizeres “abra sua mente, gay também é gente”, daquela música dos Mamonas Assassinas. Ah, esquece, não é do seu tempo… Piada interna, depois te explico. Os imbecis se multiplicavam na velocidade das bactérias – outro defendeu que os gays deviam ser enviados para uma ilha, tipo um cativeiro.


Agora, o que não tinha graça nenhuma. Toda semana os portais de notícias traziam histórias de gays espancados e assassinados por serem gays. Pertinho de onde eu morava, na avenida Paulista, um jovem foi agredido com uma daquelas lâmpadas fluorescentes grandonas. Eu chorei quando soube de um rapaz, João Antônio, morto e encontrado com sacolas e papeis na boca. Grande parte dos casos não era enquadrada como homofobia, um crime de ódio que tem uma condenação maior. Em dez países, gays eram punidos com pena de morte. Um horror. Foram dias difíceis, querido. A intolerância reinava. As pessoas não entendiam que amor e desejo não se tratam de escolha. Elas se achavam no direito de determinar o que era “normal” e “anormal”, de ferir física e emocionalmente o outro, de usar o nome de Deus para justificar suas atitudes animalescas. Eu desconfio que eles é que vão ter que se acertar com Deus – se ele existir mesmo. Daqui a uns anos, eu pergunto para o Próprio e tento te mandar um email de lá. Tomara que o wi-fi seja liberado.


Gente influente, como autores de novelas, criaram personagens com as mais diversas nuances com o intuito de levar o debate para dentro das nossas casas. Nunca vou esquecer da cena de beijo entre o Félix e o Nico, até meio inocente. Mas, da janela do meu apartamento, ouvi fogos e gritos de “uhulll” na vizinhança. Estava claro que muitos de nós festejávamos aquele avanço e esperávamos por muito mais. Manifestações cobriram as ruas por direitos iguais. Arrepiei quando li uma carta de um avô sobre o neto gay e vi um vídeo sobre pais falando de seus filhos gays. Pensava em você, querido. No mundo mais generoso em que eu gostaria que você crescesse. Que você pudesse andar de mãos dadas e beijar na boca de outro homem, se assim desejasse, sem ser recriminado. Que ninguém fosse julgado pelo desejo, mas pelo caráter. Você é hétero? Não faz diferença.


Muito antes de eu nascer, os negros não podiam namorar os brancos, as mulheres não podiam trabalhar, o divórcio era proibido. Você vai aprender essas coisas todas nas aulas de História. A sociedade evolui. Se até a medicina, que classificou homossexualidade como doença e desvio, corrigiu o equívoco décadas atrás… Portanto, eu sempre soube que uma hora os gays poderiam ser felizes sem incomodar ninguém. Como é bom saber que, enquanto você me lê, isso é realidade. É importante a gente ter curiosidade de entender o passado, o dia a dia daqueles que nos antecederam. Porque a gente valoriza o que tem hoje e fica atento para não cair em novas armadilhas. Bom, agora larga esse tablet de pulso e vem pra cá que tá saindo aquele bolo quentinho do forno.


Sua avó,
Nathalia Ziemkiewcz.


Este texto foi originalmente publicado no blog Pimentariahttp://napimentaria.com.br/.


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