Ainda e sempre o problema do ativismo
Hoje voltarei a um assunto que tem me deixado intrigado. Podem dizer que sou um chato (epistêmico). Mas não é implicância minha. Vejam que o ataque ao ativismo não é só meu. O Néviton Guedes, na coluna desta semana, criticou fortemente esse fenômeno. O que vocês lerão é apenas a ponta do iceberg que é o ativismo que domina parcela da aplicação do direito em terrae brasilis. Está na hora de assumirmos posição acerca do que queremos para o direito. Semana a semana, bato nessa tecla. Por vezes, dá-me a impressão que falo ao vento Por isso a coluna do Néviton foi uma boa aragem; do mesmo modo, os bons ventos que vem da coluna Diário de Classe todas as semanas, opondo-se ao ativismo). E que o direito, de fato, não é um espaço para reflexão, sendo apenas uma mera (ir)racionalidade instrumental, com o qual se faz qualquer coisa. Mas qualquer coisa mesmo. Onde o almoço é motivo para decidir para lá e para cá.
Denunciei, aqui, a inconstitucionalidade flagrante do artigo 23 da LC 64 (Lei Eleitoral). E “ouvi” um silencio retumbante da comunidade jurídica. Todo mundo parece achar normal que, em uma democracia, possa ser crível que uma lei diga que
“O Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral”.
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Não obtive apoio na e da doutrina de Pindorama.[1] Clamei, dizendo: doutrina, doutrina, onde estás que não respondes?, mas nada ocorreu. Resultado: o Supremo Tribunal Federal considerou o tal dispositivo constitucional, no julgamento da ADI 1.082. Isso fez com que eu escrevesse nova coluna, criticando — com toda lhaneza — a decisão do Pretório Excelso.
Perguntava eu, então: Pode o juiz, na democracia, formular presunções mediante raciocínios indutivos feitos a partir da prova indiciária?
Qual é o problema de induções e julgamentos por presunções? Um, não. Vários. O principal deles é que, em julgamentos por presunções, o pobre do utente não pode provar o contrário. Ele é culpado de plano, só porque só-podia-ser-ele e que “todo-mundo-sabe-que-foi-assim”. O juiz já formou a convicção…por presumir que ele é culpado! Bingo!
Dizia eu também: o que é isso, o “interesse público de lisura eleitoral”, que tudo justifica? Quem dirá o que interessa ao público? Vejam a fragilidade normativa de um dispositivo desse tipo. Substitua-se por “o juiz decidirá conforme a sua consciência e da forma que melhor atenda ao interesse público de lisura eleitoral”, e não haverá nenhuma diferença relevante da situação atual. Se o juiz está autorizado a decidir com base em indícios e presunções, e se é ele mesmo quem decide como e quando deve fazê-lo, estamos simplesmente dependentes não de uma estrutura e, sim, de um olhar individual.
É a antiteoria da decisão jurídica. Uma decisão assim não é produzida no ambiente democrático do processo, mas no terreno solitário da mente judicial. O fato de ela ser “jogada” num processo, e de se submeter “aos recursos inerentes à legislação processual” não é o suficiente para salvá-la. A decisão democrática deve ser precedida de debate em contraditório, pois não? Com a palavra, os processualistas e constitucionalistas! Bem, o resto leiam ou releiam a coluna que tratou do assunto.
Eu avisei…
Pois vejam o que aconteceu. Leiam parte da decisão a seguir e verão o ovo da serpente que está em gestação, graças ao artigo 23 da LC 64, monumento à não democracia.
Ei-la:
“Cumpre ressaltar a dicção do art. 23 da Lei Complementar no 64/1990, que autoriza o julgador a formar sua convicção ‘pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral’.
Em sintonia com este comando legal, saliento que esta julgadora estava diuturnamente presente na Comarca e, acompanhou de perto todo o pleito eleitoral de 2012, presenciando a dificuldade dos investigantes, para comprovar os ilícitos praticados pelos investigados, durante todo o período eleitoral, demonstrado com a propositura de várias ações cautelares. (…)[2]grifei
Quero dizer, antes de tudo, que não me importa se o candidato – esse que se ferrou – é ou não inocente. Isso é irrelevante. O que importa é saber que a juíza colocou nos autos sua opinião pessoal, extraída de sua subjetividade e sua apreciação pessoal dos fatos. Mesmo que os autos não retratassem isso, ela, em outras palavras, disse que não importa se ficou ou não provada a culpa do réu; o que importa é que “eu-sei-que-ele-é-culpado”. E por quê? Porque sim.
Digo eu: E daí? Juiz que testemunha os fatos não pode julgá-los. Ele pode, no máximo, ser arrolado como testemunha. E testemunha não julga. Simples, pois. Mas, de onde vem essa “possibilidade de ir-além-da-prova-provada”? Simples: Da disposição da malsinada Lei Eleitoral. Sim, a mesma lei que diz que podem ser usados presunções e fazer induções. É preciso dizer mais?
Vou me abster de seguir o comentário. Vou repetir um dos meus poetas preferidos, T. S. Eliot: em um país de fugitivos, quem anda na contramão…parece que está fugindo. Sigo acreditando que o direito é um fenômeno complexo. E que decisão não é escolha, conforme explicito amiúde em Verdade e Consenso e Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. Fosse escolha, estaríamos (embora lamentavelmente estejamos) à mercê das opiniões pessoais dos julgadores. E, cá para nós, decisão também não é opinião. Decisão é um ato de responsabilidade política. Tenho, no mínimo, umas oito colunas que tratam disso nos últimos dois anos.
Retorno, para dizer, numa palavra, que essa questão da decisão jurídica é tão importante que deveria ser transformado em disciplina nas Faculdades de Direito. E essa discussão sobre o artigo 23 da LC 64, que deu azo à decisão acima comentada, é — no plano da filosofia e da teoria do direito – tão singela quanto saber que, fosse o Tribunal uma junta médica e aparecesse um paciente sangrando, seria óbvio que a única coisa que não poderia ser ministrada ao infeliz era um anticoagulante. Se me entendem a alegoria (ou simplesmente a ironia).
E por que ela é singela? Porque na democracia só vale a prova submetida ao contraditório e não à presunção do julgador. Ora, de que vale o trabalho do advogado se, na hora “h”, o julgador pode sacar da manga do colete uma katchanga “real” do tipo “embora não haja provas, eu sei que foi assim”. A propósito: leiam de novo essa coluna da Katchanga. Eis as razões de minha chatice epistêmica. De todas as quintas-feiras.