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Quando o pênalti é marcado no meio do campo…

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Por Lenio Luiz Streck


Caricatura Lenio Streck [Spacca]Em tempos de Copa do Mundo Fifa, quando a histeria dos meios de comunicação tenta a todo custo criar uma espécie de imaginário “pátria de chuteiras tardio”, com slogans como “somos um só”, veio-me à memória, ainda em voo entre São Paulo e Porto Alegre, a analogia que pode ser feita entre o futebol e o direito. Aqui, faço uma linha de passe com os jusludopedistas Alexandre Morais da Rosa (centroavante) e o meio-campista Rafael Tomás de Oliveira (como consta de minha ficha na Federação Gaúcha de Futebol, fui goal keeperler aqui.


Lembro-me como se fosse hoje da primeira leitura que fiz de Herbert Hart, lá no início dos anos 80, da obra O Conceito de Direito. Éramos — os críticos de então — ou marxistas ou analíticos lato sensu. Por vezes, uma imbricação dos dois, mesmo que isso parecesse estranho. Ocorre que nos anos 70-80 o modo de lutar contra o sistema-regime era — ao menos no plano da luta no campo da institucionalidade — nos aproveitarmos das brechas proporcionadas pelos estudos da semiologia política (Warat) e/ou das perspectivas que as teorias analíticas nos davam. Vaguezas e ambiguidades eram o caminho para tentar convencer algum juiz progressista de que lei e direito não eram a mesma coisa. Lembro-me de um livro que fez muito sucesso à época, chamado O Caráter Retórico do princípio da Legalidade, de Rosa Maria Cardoso da Cunha, resultado de sua dissertação de mestrado orientada por Luis Alberto Warat (assim como Leonel, eu e uma geração de pessoas). Também o livro Requisitos Retóricos da Sentença Penal, de Nilo Bairros de Brum, tinha lugar certo nas estandes. E bastante Lyra Filho também. E Tércio Ferraz Jr.

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Líamos Wittgenstein, Barthes, Castoriadis, Poulantzas, Eco, Baktin, Bourdieu, Passeron, Bobbio, Dworkin, Bachelard, Miaille, Foucault, Ross, Kelsen, os autores do linguistic turn, etc Embora fosse um positivista, Hart estava para além do exegetismo. José Lamego afirma que Hart deu uma espécie de “ponta-pé inicial” para a “recepção da hermenêutica pelo direito” quando tratou da “textura aberta do direito”, abordando expressamente os problemas semânticos e pragmáticos que envolvem a decisão judicial. E, com ele, podia-se fazer a crítica — também presente em autores como Carrió — tanto do formalismo-exegetismo como do realismo jurídico (embora o próprio realismo fosse um instrumento extremamente relevante para deslocar a validade das leis de um sistema autoritário em direção da facticidade, neste caso “confiando” no ativismo de alguns juízes que resistiam à ditadura).


E uma coisa que fizemos na sala de aula do mestrado — o professor era o Leonel Severo Rocha (vejam como ele é antigo nesse ramo!) — foi adaptar o exemplo de Hart sobre o jogo de críquete para o futebol. Hart falava das regras do jogo e do árbitro. Já com a adaptação, ficava mais ou menos assim: as regras do jogo não são as regras do árbitro. O jogador entrando na área e é derrubado no meio da área, é pênalti. Se o jogador estiver entrando na área, meio metro para dentro, meio metro para fora, essa é a zona da franja (cinzenta), em que o árbitro tem discricionariedade para decidir se marca ou não o pênalti (em um regime autoritário você não se importa com o poder discricionário — o que se deve fazer é trazê-lo para o lado dos direitos humanos). Assim, com certeza, se um jogador for derrubado no meio do campo ou a dois metros da grande área, não será pênalti. O árbitro pode até marcar. E valerá. Mas o problema será a jogada seguinte, porque outro jogador exigirá pênalti se for derrubado no meio do campo. Neste momento, já não estará ocorrendo um jogo de futebol que tem suas regras e, sim, o jogo das regras do árbitro. Já não será futebol.


Não vou discutir as críticas que Dworkin fez à Hart, seu professor. Quero apenas mostrar a importância das regras do jogo. E se pensarmos no jogo de futebol mesmo, veremos que o árbitro está submetido a uma accountabillity muito maior que a dos juízes. Um pênalti mal marcado ou uma expulsão equivocada é “denunciada” pelas câmaras de TV. E ele sofrerá um enorme “constrangimento”. Claro que o resultado do jogo transita em julgado. Vale. Mas, com certeza, em face desses constrangimentos ludo-epistêmicos, nenhum árbitro tem coragem de inventar um pênalti a dois metros da linha da grande área.


Hoje quando vemos determinadas decisões judicias, percebemos facilmente como o Judiciário vem marcando pênaltis no meio de campo. Ou seja, toda vez que o Judiciário se mostra decisionista (para dizer o menos), estará incorrendo naquilo que Hart tanto criticava. Não preciso lembrar os leitores sobre as inúmeras decisões judiciais que podem, metaforicamente, ser enquadradas como “pênaltis na intermediária”.


Regras, princípios e o futebol
Para Hart, o direito é um sistema de regras. Dworkin justamente o criticou por considerar que o direito é um sistema de regras…e princípios. Hart achava que resolvia o problema dos casos difíceis a partir da discricionariedade. E nunca pensou que a moral pudesse corrigir o direito a partir de um canal denominado “princípio”. Hart pode ser considerado como um positivista moderado porque aceitava que, pelas peculiaridades decorrentes do caráter sociológico de sua regra de pedigree, a regra de reconhecimento, a tradicional separação entre direito e moral estava, de certo modo, errada: não haveria uma total exclusão desses dois ambientes normativos, mas, sim, algumas nuances que revelariam algum tipo de imbricação. De todo modo, no que tange à origem, moral e direito estariam desligados, como espécies de sistemas autônomos, que poderiam se encontrar em alguns pequenos pontos de contato, mas que em nenhuma medida seriam cooriginários. Este, aliás, outro ponto de dissidência de Dworkin para com seu mestre.


Mas o que por certo deixaria Hart nervoso e irritado seria tomar conhecimento do modo como o sistema de regras foi conspurcado pela tese de que-princípios-são valores. Terrae brasilis seria um bom laboratório para Hart perder a sua paciência. E quando se deparasse com o pamprincipiologismo, provavelmente teria uma sincope.


Mas, deixemos pra lá. Tudo isso estou dizendo para homenagear o mestre de Oxford — e vejam que não sou adepto de suas teses. Entre ele e seu discípulo Dworkin desde cedo fiquei com o aluno. Apenas trago à colação a sua tese — utilíssima — para demonstrar os limites interpretativos que exsurgem a partir do capítulo que escreveu sobre os problemas existentes entre dois planos: o mundo dos conceitos do formalismo e o cepticismo em relação às regras. Daí a metáfora do críquete transmudado para o esporte bretão (aliás, como o críquete). Hart não aceitava nenhum dos dois.


Assim:
Na distinção estrutural que se vê por aí (ou de sua vulgata mais utilizada), a coisa funciona mais ou menos assim, se utilizarmos a metáfora futebolística: as regras são jogadores que devem resolver o jogo quando este é fácil. Se o caldo engrossar, convoquem-se os princípios, que ficam aquecendo à beira do gramado. Como dizem alguns adeptos das teorias da argumentação, casos fáceis se resolvem na base da subsunção, isto é, utiliza-se a regra porque está dá conta; nos casos difíceis, há que se chamar à colação os princípios, que, uma vez em colisão, devem ser ponderados. Por isso, os princípios nunca saem jogando. Sempre estão no banco de reservas. Ficam em permanente aquecimento. Jogo fácil, estão dispensados; jogo difícil, eles são chamados. Claro que a sua entrada é complicada, porque eles devem, antes de resolver o jogo, ganhar espaço no gramado da discricionariedade.


Daí a grande questão: quando Hart abre um espaço teórico para tratar dos problemas ligados à decisão judicial, com sua crítica ao ceticismo perante regras e a tematização da “textura aberta do direito”, sua proposta acaba recrudescendo porque o alcance de sua teoria não chega ao enfretamento do problema interpretativo. Acaba recaindo em uma radicalização da “perspectiva do observador”, quando explica as diversas possibilidades de decisão dos casos cobertos pela “zona de penumbra” a partir da tese da discricionariedade.


Tenho dito que a explicação mais elementar sobre o que seja uma teoria do direito pós-positivista se encontra no fato de que, em tais casos, o problema teórico central passa a ser a interpretação e a concretização do direito, na perspectiva de encontrar aí elementos de objetividade mínima para o discurso jurídico. Teorias como aquelas defendidas por Dworkin ou Friedrich Müller vão no cerne desse problema. São teorias pós-positivistas por excelência. Todavia, as teorias da argumentação não chegam a esse ponto. De algum modo, preocupam-se também com a decisão judicial. Todavia, entendem que a racionalidade e legitimidade dessas decisões estariam garantidas por procedimentos ou relações discursivas que são construídas antes dos casos. Vale frisar, antes da decisão.


Há um texto de Paul Ricouer que capta bem essa questão a partir de uma diferença entre interpretação e argumentação. No caso, o autor corrobora, de algum modo, o que foi dito acima a partir de um contraste que se pode observar entre Dworkin e Alexy: diferentemente da teoria de Robert Alexy, que possui a característica de reivindicar para a pratica argumentativa geral a qualidade de Begründung, ou seja, de fundamentação, Ronald Dworkin está muito mais interessado no horizonte político-ético no qual se desdobra a pratica interpretativa do direito. Para este último, afirma Ricoeur, o direito é inseparável de uma teoria política substantiva. É esse interesse último que, afinal, o afasta de uma teoria formal da argumentação jurídica.


De algum modo, a íntima relação entre princípios e valores que existe na obra do próprio Alexy leva a esse resultado deletério que, ao fim e ao cabo, enfraquece o caráter deontológico dos princípios.

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Retomando a metáfora futebolística, fico pensando no princípio da dignidade da pessoa, que seria uma espécie de volante de contenção que joga na frente dos zagueiros; o princípio que sempre entra machucado é o do direito adquirido, um ponta esquerda em desuso. Nos últimos tempos começou a surgir um monte de pernas de pau, que passaram a entrar em campo diretamente, já no início dos jogos. Alguns empresários convenceram os técnicos a promoverem a estreia de jogadores que nem sabiam jogar, como a dupla de meio campo Humanidade e Felicidade, além dos atacantes Confiança no Juiz da Causa, Ausência Eventual do Plenário (esse na verdade nem chega a se fardar), Hipperrealidade, Imediatidade e tantos outros jogadores que mal conseguiriam jogar no Fast Club de Manaus.


Com isso, o “jogo” começou a ficar fragilizado, porque os novos personagens não faziam parte do jogo. Não tinham pedigree. Sequer sabiam (ou sabem) que futebol se joga com os pés. Isso fez com que o “campeonato” passasse a ter várias divisões. E muitos optaram em formar equipes para disputar apenas campeonatos de várzea e divisões de acesso (sabendo que, ao produzir jogadas simplificadas, jamais se classificarão).


Os jogadores que acreditam nas máximas de que “futebol é uma caixinha de surpresa” são os que acreditam que o árbitro apita de qualquer jeito (se me entendem a ironia e/ou o sarcasmo, sem que precisemos chamar o estagiário das placas à colação!). O negócio é ter um capitão que vá lá e “peite” o árbitro. Vivem se queixando da arbitragem, mas acham que “isso é assim mesmo” (de novo parece despiciendo o levantamento de placa). Inventaram uma jogada nova, chamada “drible da vaca”, conhecido também como “embargos ludopédicos”, pelos quais exigem que o árbitro, depois que já deu o pênalti fora da área ou inventou um “perigo de gol” aos 47 minutos do segundo tempo, explique os motivos de tal agir. Só que o árbitro diz que, segundo a súmula da Fifa, ele não é obrigado a explicar os motivos. E, bingo: mais uma partida perdida e…rumo à terceira divisão.


A regra é clara, diz o filósofo jusludopédico Arnaldo. Só que a regra não abarca todas as jogadas de antemão. E aí complica o jogo. Como se apita? Muita mesa redonda na TV às noites de domingo para explicar a conduta do árbitro depois de olhar o lance em slow motion. No fundo, o que vige no futebol é o princípio (sic) de que o “o olho humano” não consegue ver os detalhes que só a TV vê. Logo, o árbitro tem imunidade para errar… Porque tem absoluta…discricionariedade. Mas mesmo assim leva o maior pau. E é impressionante como mesmo com o lance na TV, o técnico do time adversário não consegue se convencer que o jogador estava um metro fora da área… Como um bom sofista pós-moderno, diz: “mas é uma questão de interpretação; eu tenho a minha verdade; você tem a sua”. Boa, não? Será que já não ouvimos isso na discussão do e no direito? Onde está escrito que “o juiz somente pode fazer perguntas complementares”… leia-se o contrário. Afinal, errar é humano… e “cada um tem a sua verdade”. E chamemos os comerciais.


E os dobermanns estraçalharam com o que resta(va) de poético no direito
Finalmente, um dos grandes problemas são as escolas onde se aprende a jogar e a arbitrar. Nas Faculdades jus-ludopédicas, qualquer perna de pau recebe a autorização para sair jogando e, se quiser, pode abrir uma “escolinha de futebol”, para que os pernas de pau possam se preparar para buscar lugar nos clubes que disputam as divisões de acesso e cursinhos de preparação para aqueles que desejam entrar nos times que já disputam as divisões autorizadas pela Fifa. Em todos esses cursinhos-escolinhas, usa-se material esportivo de segunda classe. Ou de terceira. A Nike só patrocinará depois que o jogador passar pelo(s) teste(s). Então passará a jogar de chuteira. E estará autorizado a dar chutões para tudo que é lado (Aqui o estagiário, constrangido, levanta a placa: é uma metaforização do ensino jurídico e dos cursinhos…).


Eis aí as razões pelas quais o “futebol” está se transformando em um jogo em que imperam os brucutus. Como bem diz o grande ludopedista Paulo Cesar Caju, um dos maiores especialistas no ramo que vi jogar (esse era o cara), “os dobermanns estraçalharam a poesia do futebol” (ler aqui). E eu acrescento: os dobermanns do direito estraçalharam com o que restava de poético no direito: o seu grau de autonomia, um mínimo de erudição e os paradigmas filosóficos! Ah, os paradigmas filosóficos… Passaram a jogar um “futebol” — continuemos na metáfora — em que Cruyff e Pelé seriam liquidados pelo primeiro volante de contenção e por zagueiros como Davi Luiz (cujos pontapés que são considerados pelo filósofo contemporâneo Ronaldo Fenômeno como “falta tática” — argh) e Lúcio (ex-seleção), que chutava até a sombra e a mãe.


Sei, sei. Lúcio foi campeão e Davi Luiz poderá ser. E daí? Que futebol é esse? É como as efetividades quantitativas dos tribunais. Põe-se os processos em uma pilha e, zás-trás, julga-se-os em segundos. Na verdade, atualmente nem os autos são postos à disposição; apenas uma lista dos processos (só para registrar, denunciou essa prática há alguns anos – minha tese de doutorado é sobre o poder de violência simbólica das súmulas e o perigo das universalizações de sentido, que são totalizantes e, quiçá, totalitárias). O Hulk é uma espécie de autor, quer dizer, jogador de direito simplificado. Faz um resumo do resumo. Mas o Felipão gosta dele. Ele é efetivo. É como o professor que ensina o ECA por funk. Os alunos gostam. Um aluno que acabou de se formar em uma Faculdade de São Paulo me escreveu dizendo que durante os cinco anos nenhuma obra das que eu cito em meus livros ou nas colunas foi indicada no curso. Passou os cinco anos com resumos, apostilas, plastificações e facilitados em geral. Eis aí o campeonato pindoramense de jusludopedismo: bola pro mato que o jogo é de campeonato! E pênalti no meio de campo vale!


Por fim, já que estamos a tratar de futebol e da grande corporação medieval que o administra (a tal Phipha), calha um fecho que traga uma mensagem a respeito da Copa do Mundo. Sete anos depois ela chegou. Começa hoje. Repleta de perplexidades. Estruturas financiadas pelo Estado que, mesmo com os gastos exorbitantes e todo o tempo de preparação (foram sete anos!!!), chegam ao início do evento inacabadas. No itaquerão, dizem, não haverá conexão wi-fi ou 4G. Parece que não ficará disponível em tempo. Mas, a despeito de tudo isso, a Copa do Mundo — e a sua conta — é nossa…e com brasileiro não há quem possa…


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